IDEIAS 2



IDEIAS - O feminismo negro de Paulina Chiziane (1)
- Para João Craveirinha, pela amizade e pelos subsídios fornecidos para este ensaio
SE a literatura escrita por mulheres já é um mundo diferente, abordado por ângulos que romancistas e contistas homens dificilmente vêem, imaginemos, então, o que pode ser o mundo visto por uma mulher africana, moçambicana, ainda mais se é governado por costumes e tradições que nos soam estranhos. Esse estranho e mágico mundo é o que oferece em seus livros Paulina Chiziane (1955), a primeira romancista negra de Moçambique.
Diz-se aqui primeira romancista negra porque não seria correcto chamá-la de primeira escritora moçambicana, pois Lília Momplê (1935), nascida na Ilha de Moçambique, autora de livros de contos e de uma biografia, professora, funcionária da UNESCO e ex-secretária-geral da Associação dos Escritores Moçambicanos, apareceu antes dela, já à época pós-Independência. E é provável que haja outras moçambicanas autoras de livros. Acontece que Lília Momplê, descendente de macua, é mestiça, carregando sangue europeu nas veias. E, se o critério for o de uma suposta africanidade, Paulina seria a primeira negra escritora de Moçambique, mas definitivamente não é a primeira moçambicana escritora.
É claro que estes "divisionismos cromáticos" não levam a nada, até porque ninguém seria mais ou menos moçambicano por causa da cor da pele. Seja como for, o que se sabe é que na sociedade moçambicana destes dias há duas versões para esta questão: uma para consumo interno (que nem todos são tão escuros) e outra para consumo externo (mais abrangente).
Isto sem contar certos "paternalismos colonialistas" que levam escritores de Moçambique e Angola, com raízes mais europeias do que afrobanto, a encontrar melhor recepção na indústria editorial, além de maior divulgação pelos meios de comunicação da antiga metrópole e do Brasil. Ou será que é só por falta de informação ou coincidência que na universidade brasileira, durante encontros sobre literatura africana de expressão portuguesa, só se fala em Mia Couto (1955), José Eduardo Agualusa (1960) e Pepetela (1941)?
Afinal, não se pode dizer que Paulina Chiziane seria desconhecida no Brasil. De Paulina, a Companhia das Letras, de São Paulo, em 2004, lançou o romance Niketche. Uma história de poligamia, que a Editorial Caminho, de Lisboa, publicou em 2002, enquanto seus outros livros ainda aguardam a boa vontade de algum editor brasileiro.
Nascida em Manjacaze, na província de Gaza, ao Sul de Moçambique, Paulina viveu no campo até os sete anos, quando se mudou para os subúrbios da cidade de Maputo, onde frequentou estudos superiores de Linguística na Universidade Eduardo Mondlane, sem concluí-los. Nasceu numa família protestante onde se falavam as línguas chope e ronga.
No campo falava a sua língua materna, o chope, e, quando se mudou para a cidade, teve de aprender o português na escola, enquanto era obrigada nas ruas a falar o ronga, a língua nativa de Maputo. "Sou chope, o meu pai era alfaiate de esquina, só depois arranjou uma barraca. A minha mãe sempre foi camponesa, às vezes ficava uma semana sem vir à casa, a tratar da machamba (plantação de mandioca)". A voz da escritora moçambicana Paulina Chiziane é serena, mas o orgulho das origens é indisfarçável.
Aprendeu a língua portuguesa na escola da missão católica. Aos 20 anos, cantou o hino da independência moçambicana, gritou contra o imperialismo e o colonialismo e, depois, com a guerra civil (1975-1992) que arrasou o país, desencantou-se. Por isso, os seus livros nem sempre falam directamente da guerra, mas de um país destruído, da miséria de seu povo, da superstição, dos rituais religiosos e da morte.
Participou activamente da vida política de Moçambique como membro da Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo), na qual militou durante a juventude, tendo sido eleita nas primeiras eleições multipartidárias em 1994. Mas trocou a vida partidária para se dedicar à escrita, ao trabalho na Cruz Vermelha e à publicação das suas obras, provavelmente, desiludida com o machismo que ainda marca as relações políticas no país.
II
Em seu último livro, O alegre canto da perdiz (2008), além dessas questões que marcam a secular submissão da mulher ao universo do homem em certas sociedades africanas, Paulina leva o leitor a confrontar-se também com a questão do reducionismo praticado por quem olha a África de fora e procura apresentar a sua História e sua Literatura como se o continente africano se tratasse de um só país, tal como denunciou a escritora nigeriana Chimamanda Adichie (1977) em seu discurso contra o perigo de se ouvir e repetir uma história única, a dos vencedores. (ADICHIE, 2009).
Como muito bem observa Nataniel Ngomane, doutor em Letras pela Universidade de São Paulo (USP) e professor da Universidade Eduardo Mondlane, no posfácio que escreveu para este livro, Paulina, se não é a primeira, com certeza, é a voz que mais alto se eleva hoje para recuperar temas "esquecidos" por aqueles autores africanos de expressão portuguesa cujas raízes remontam ao colonialismo - ainda que sejam críticos ou tenham lutado contra o colonialismo -, ao aflorar temas como o racismo, a assimilação, a subjugação de valores africanos aos valores europeus, a poligamia, as relações de subserviência não só no lar, mas entre nações e grupos étnicos.
Como o fizera em Balada de amor ao vento (1990), seu livro de estreia, com Sarnau, em Ventos do apocalipse (1999), com Minosse e Wusheni, em O sétimo juramento (2000), com Vera, e em Niketche (2002), com Rami, mulheres que vão à luta, em O alegre canto da perdiz, Paulina apresenta Serafina, Delfina, Maria das Dores e Maria Jacinta, uma geração de avó, filha e netas, personagens metonímicas que se desdobram e mostram os conflitos da sociedade na Zambézia, província moçambicana do Centro-Norte, onde a autora vive há largos anos.
A metáfora unificadora deste livro está em que a Zambézia seria o centro do cosmos, com os Montes Namuli como o ventre do mundo ou o berço da Humanidade. E isso vem oportunamente ao encontro de uma investigação genética mundial hoje em curso denominada "The Genographic Project", da revista National Geographic, em parceria com a IBM, que aponta que a espécie humana saiu de um tronco comum africano e que o que existe hoje no mundo - e que, no passado, chamávamos de "raças" - são variantes de uma marca genética comum.
Dessa forma, os actuais moçambicanos, independentemente de que nação sejam, segundo essas pesquisas, seriam do haplogrupo L0 do tipo mtDNA (mt de linhagem mitocondrial), que teria surgido há cerca de 100 mil anos na África Oriental, expandindo-se para o Oeste e o Sul e mesmo para fora de África. Surpreendente é o fato detectado de que partilhamos uma linhagem comum, ou seja, não seriam necessários mais que 20 mil anos para que africanos mais escuros e de olhos pretos se tornassem europeus nórdicos muito mais claros e de olhos azuis e vice-versa. "Toda a raça humana é mestiça de cruzamentos híbridos muito antigos". (CRAVEIRINHA, 2005, pp.103-104).
A partir da reconstrução desse mito - que, agora, começa a ganhar bases científicas -, Paulina reconstitui também o mito da origem matricial do mundo. E por que a Zambézia? É que essa é a região africana em que se deu com maior intensidade a miscigenação, a ponto de ser conhecida como o Brasil da África.
Ao revisitar os mitos da origem matricial, Paulina repete o que o antropólogo cubano Fernando Ortiz (1881-1969), com base nas ideias do antropólogo polonês Bronislaw Malinowski (1884-1942), baptizou de transculturação, vocábulo que mais bem expressa as diferentes fases do processo transitório de uma cultura para outra, pois esta não consiste em apenas adquirir uma distinta cultura, que a rigor é o que o termo anglo-americano acculturation significa com toda a soberba de quem o cunhou, mas o processo implica necessariamente a perda de uma cultura precedente, ou seja, uma parcial desculturação, e significa a criação de novos fenómenos culturais (ORTIZ, 1973, pp.134-135).
Em outras palavras: não há aculturados, no sentido da perda de uma cultura própria substituída pela do colonizador (e no sentido africano o colonizador aqui não é só europeu, mas refere-se também a povos africanos e outros que colonizaram e subjugaram povos africanos, vendendo-os aos traficantes europeus). É o que se pode compreender melhor nas palavras do escritor peruano José María Arguedas (1911-1969), igualmente antropólogo: "Não sou um aculturado: sou um peruano que orgulhosamente, como um demónio feliz, fala em cristão e em índio, em espanhol e em quechua". (ARGUEDAS, 1975, p.282).
O drama da África passa exactamente pelo que outros povos fizeram dela, o que não significa que se o continente tivesse continuado isolado, teria tido um futuro melhor. Um drama que Paulina soube como ninguém resumir nestas linhas de O alegre canto da perdiz:
"As mães gostam de dar aos filhos nomes de fantasia. Nomes de passageiros, de vagabundos. Os negros converteram-se. E começaram a chamar-se Sofia, Zainabo, Zulfa, Amade, Mussá. E tornaram-se escravos. Vieram os marinheiros da cruz e da espada. Outros negros converteram-se. Começaram a chamar-se José, Francisco, António, Moisés. Todas as mulheres se chamaram Marias. E continuaram escravos. Os negros que foram vendidos ficaram a chamar-se Charles, Mary, Georges, Christian, Joseph, Charlotte, Johnson. Baptizaram-se. E continuaram escravos. Um dia virão outros profetas com as bandeiras vermelhas e doutrinas messiânicas. Deificarão o comunismo, Marx, marxismo, Lénine, leninismo. Diabolizarão o capitalismo e o Ocidente. Os negros começarão a chamar-se Iva, Ivanova, Ivanda, Tania, Kasparov, Tereskova, Nadia, Nadioska. E continuarão escravos. Depois virão pessoas de todo o mundo com dinheiro no bolso para doar aos pobres em nome do desenvolvimento. E os negros chamar-se-ão Sofia, Karen, Tânia, Tatiana, Sheila. Receberão dinheiro deles e continuarão escravos". (CHIZIANE, 2008, pp.156-157).

  • Adelto Gonçalves
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IDEIAS - Romance Balada de amor ao vento: A questão multicultural como indefinição de identidade
O artigo apresenta o multiculturalismo expresso na relação social não harmónica em Balada de Amor ao Vento, de Paulina Chiziane (2003). A busca de identidade da protagonista será analisada num ambiente de valores contrastantes. Diante desse conflito, Sarnau encontra somente na desconstrução do seu ser uma identidade que, embora seja degradante, é a que lhe resta para se constituir como mulher.
Belinsky (2007), Hall (2003) e Schmidt (2000) fundamentam teoricamente o tema da formação identitária.
Introdução
O romance de Paulina Chiziane (2003), Balada de Amor ao Vento, será lido a partir dos problemas de identidade da protagonista Sarnau numa sociedade multicultural. Diante dessa ambiguidade social, procurar-se-á apontar os dilemas vivenciados por essa personagem, que acaba por tornar-se tão ambígua quanto o local em que vive. Os múltiplos valores e as diferentes tradições desse povo resultam, ao contrário do que se prevê, não em possibilidade de escolha de qual ideologia seguir, mas num estado de exclusão do indivíduo, seguido de uma abordagem crítica de não submissão ao sistema, o que, entretanto, não gera consequências positivas à Sarnau. O mais, portanto, equivale ao menos. O objectivo nesta análise é apresentar essa duplicidade contrastante de Sarnau, que é e não é poligâmica e politeísta, ao mesmo tempo que deseja e não pode ser monogâmica, especulando se essa dupla inserção e exclusão cultural não acaba privando-a de um papel identitário em seu meio.
Contudo, há que se discutir, antes de tudo, o conceito de “identidade” para analisar a personagem Sarnau.
Para Schmidt: Identidades são concebidas aqui como movimentos contínuos/descontínuos das relações que sujeitos, comunidades, nações estabelecem imaginariamente com o outro, o que garante sua auto-constituição e sua inserção dentro de certas condições sócio-históricas e discursivas que são, elas próprias, sustentáculos daquelas relações. Nesse sentido, as identidades resultam de tecnologias de produção de subjectividades, cujas representações simbólicas são, por excelência, o lugar da ideologia. (SCHMIDT, 2000, p.103)
As observações quanto ao aspecto cultural que envolve a mimese do romance chamam a atenção de leitores por seus diversos contrastes ideológicos, especialmente porque se evidenciam personagens inseridos em uma sociedade onde vigoram diferentes sistemas. Esses valores sociais que se opõem são evidentes nos mais variados actos, costumes e crenças do povo, o que não significa que não haja um certo confronto entre eles, assim como não há uma repleta harmonia. Na verdade, antes de uma relação de extremos, o que existe é uma tentativa de con-formação dos contrastes, o que, como se notará a seguir, não será assimilado harmoniosamente pela protagonista. No romance, nota-se que os valores dos brancos coexistem com os valores das tribos e isso é feito, de certa forma, somente dentro da possibilidade de convivência e aceitação mútua. Àquele que não se submete a um desses sistemas, atribui-se o estado de um “ser deslocado”, e essa situação torna-se destrutiva à protagonista. Na verdade, como afirma Schmidt no trecho supracitado, a identidade é resultado das relações sociais. Essas mesmas relações, portanto, são determinantes na formação da subjectividade de Sarnau. De outra forma, as identidades é que produzem o relacionamento social. A protagonista, então, é um dos tantos indivíduos que, ao se relacionarem, formam a sociedade tal qual ela é: repleta de convergências, mas também de divergências, devido a influências que cada ser humano absorve e difunde em seu meio. Com isso, a identidade de Sarnau não se constitui por seguir uma ou outra tradição cultural-religiosa, mas pelo binómio oposição-ratificação dessas duas vertentes.
2. Contraste na visão sexual
Os personagens diferenciam-se primeiramente por sua criação, ou seja, pelos rituais e valores introjectados desde a infância. Koselleck (1979) é citado por Belinsky no que se refere à constituição identitária do indivíduo:
El espacio de experiencia incluye tanto elementos conscientes como inconscientes; además – y esto es muy importante – no se refiere sólo a lo individual, sino también a lo colectivo, donde están contenidas y conservadas experiencias transmitidas por generaciones pasadas. En suma, el campo de experiencia es un pasado-presente. (apud. BELINSKY, 2007, p.94)
Sarnau é criada por sua tribo de uma forma menos conservadora que a dos brancos, principalmente no que se refere a relações sexuais, as quais podem se dar com a condição de a menina ser descompromissada. Sua experiência, portanto, diferencia-a dos cristãos. Assim, numa festa de circuncisão de “meninos já tornados homens” (p.12), Sarnau coloca-se na “rede para ser pescada” (CHIZIANE, 2003, p13), o que se infere que ela se põe à disposição dos rapazes. A única restrição a isso é já ser “mulherzinha” e ter cumprido com todos os rituais necessários para a sua iniciação. Essa liberdade é enfatizada também na forma como as adolescentes são instruídas a se insinuar aos homens:
Sarnau, hoje é o dia de arranjar namorados. Em vez de estar ali a chocalhar, ponha-te à vista, ginga, rebola, para as moscas perseguirem as tuas curvas, menina. Olha, eu já arranjei um namorado, e que janota, amiga!(CHIZIANE, 2003, p.14)
Essa insinuação com que as tribais são instruídas opõe-se fortemente aos valores cristãos, mais conservadores quanto ao papel feminino na sociedade. Em contrapartida, é o corpo com traços mais fortemente sensuais que é valorizado pelas tribos. As curvas são invejadas pelas adolescentes que almejam desenvolver um físico com aparência robusta, pois o consideram ter maior poder de conquista que um corpo frágil: “- Mas vocês ainda não viram? A Sarnau é pau de carapau. Nem curva no peito, nem curva no rabo, é estaca de eucalipto, mulher é que não, wâ, wâ, wâ (CHIZIANE, 2003, p.15)”, afirma sua inimiga, concorrente na tentativa de atrair namorados.
Sarnau, entretanto, já demonstra desde cedo que sua concepção de beleza é, de certa forma, irreverente, o que nos faz questionar Koselleck quanto à experiência ser um passado-presente. Se assim o é, há ainda que acrescentar que o indivíduo, diante de uma experiência, assimila-a subjectivamente, sendo essa assimilação o que diferencia um ser humano dos demais, embora estejam inseridos num mesmo local e embora vivenciem os mesmos acontecimentos. Lembra-se a causa e a consequência da formação de identidade, citada anteriormente: a identidade como resultante, mas também como produtora da sociedade.
É nessa mesma festa de circuncisão, na qual tribais e cristãos convivem harmoniosamente, que a heroína conhece Mwando, um garoto que se diferencia extremamente dos demais: sendo pálido e frágil, opõe-se aos outros não somente pelo tipo físico, como também pela vocação que sente para o sacerdócio. Aqui, tipo físico e identidade parecem complementares um ao outro: Aquele olhar distante, penetrante, aquela voz serena... e rosto sisudo! Bonito não era, comparado com o Khelu, esse zaragateiro, namoradeiro, sempre pronto a provocar qualquer escaramuça e esmurrar toda a gente. O Mwando é um rapaz diferente, fala bem, conversa bem e tem cá umas maneiras!... Estaria eu apaixonada?(CHIZIANE, 2003, p.15)
Manifestando um olhar que se distancia extremamente do das demais meninas da aldeia, Sarnau é a única que não menospreza Mwando por ele estar estudando para padre. Pelo contrário, ela se apaixona por ele e, contrariando os valores sociais que, supostamente, estariam introjectados nessa personagem, é ela quem o conquista e o convence a ter relações sexuais, embora isso contradiga também o sistema do colegiado cristão frequentado por Mwando: Emudecemos de repente. As mãos encontraram-se. Veio o abraço tímido. Trocámos odores, trocámos calores. Dentro de nós floresceram os prados. Os pássaros cantaram para nós, os caniços dançaram para nós, o céu e a terra uniram-se ao nosso abraço e empreendemos a primeira viagem celestial nas asas das borboletas. (CHIZIANE, 2003, p.17)
Sarnau é criada num sistema tribal de sua aldeia. Isso não a impede, todavia, de ter um gosto diferenciado das demais negras, tanto que se apaixona por um branco, cujo estereótipo difere completamente do conceito de homem atraente, vigente na sua tribo. No trecho, a delicadeza da descrição do momento em que ambos perdem a virgindade, remete-nos à dubiedade cultural em que se vê em conflito: por um lado, a descrição dos elementos da natureza, tão evocada e valorizada pelas tribos; por outro, a viagem aos céus, sendo céus metáfora de paraíso, tal qual é representado pelos cristãos.
REFERÊNCIAS
BELINSKY, Jorge. Lo imaginário: un estúdio. Buenos Aires: Nueva Visión, 2007.
CHIZIANE, Paulina. Balada de amor ao vento. Lisboa: Ed. Caminho, 2003.
HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Trad. Adelaide da Guarda Resende. Belo Horizonte: Ed. UFMG; Brasília: UNESCO, 2003.
SCHMIDT, Rita Terezinha. Em busca da história não contada ou: o que acontece quando o objeto começa a falar? In: INDURSKY; CAMPOS (orgs.). Discurso, memória, identidade. Porto Alegre: Sagra Luzzatto, 2000.

  • Cristiane Krumenauer - Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Letras do Centro Universitário Ritter dos Reis - Uniritter, especialista em Literatura Brasileira pela UFRGS
IDEIAS - DA CRIAÇÃO E DA CRÍTICA LITERÁRIA: A cultura como valor apelativo e estruturante *(1)

QUANDO, há algum tempo atrás, discutia com alguns estudantes do curso de licenciatura em literatura moçambicana os temas que iriam desenvolver para a culminação dos seus estudos, apercebi-me, uma vez mais, que todos eles, sem excepção, privilegiavam uma perspectiva onde explicitamente elementos de ordem cultural e social tinham especial relevância.
Títulos como: “A representação de espaços sociais, culturais e simbólicos do elemento feminino”, “O texto narrativo no manual escolar: leitura e transmissão de referências sócio-culturais”, “A representação do espaço suburbano no conto «O Domador de Burros», como Projecção da Moçambicanidade”, “O Quotidiano das Personagens Femininas na obra Niketche de Paulina Chiziane”, “O Papel da personagem Taba Mayeba na desmistificação dos mitos e dos ritos em Aldino Muianga”, “O Fantástico como uma Realidade Social em o Apóstolo da Desgraça de Nelson Saúte” e muitos outros títulos que não é possível aqui enumerar, são bem reveladores de como a preocupação com o elemento cultural é tão marcada nas opções de abordagem universitária da literatura moçambicana.
Aliás, um olhar panorâmico sobre a pluralidade de reflexões e publicações que têm vindo à luz, nos nossos países e não só, elucidar-nos-ia, de imediato, sobre a prevalência desses mesmos aspectos nos exercícios interpretativos que têm como objecto as literaturas africanas em língua portuguesa.
As explicações para tal fenómeno podem ser encontradas, presumo, na encruzilhada de variados factores como sejam:
Primeiro, porque as nossas literaturas, não escapando àquele que parece ser o factor transversal da arte em África, vivem de uma profunda interacção e contaminação do meio em que elas emergem estabelecendo com os ambientes circundantes um diálogo intenso, estruturante e permanente;
Segundo, porque tratando-se de literaturas surgidas no contexto colonial, portanto, em situação de dominação, há mais ou menos cem anos, acabaram por incorporar, como motivação decisiva, a preocupação com a delimitação de um território estético próprio que, naturalmente, impunha o recurso a estratégias de afirmação identitária que questionavam e se distanciavam da ordem cultural e política dominante;
Terceiro, porque a própria tradição dos estudos literários que têm como objecto a literatura africana conduziu à consagração de um modelo crítico a que dificilmente conseguem escapar mesmo as consciências mais afeitas a uma perspectiva mais formalista ou estruturalista. Por outro lado, na esteira da abertura pós-estruturalista de inspiração derridiana, irão surgir as controversas, mas importantes, formulações teóricas conhecidas como «estudos culturais» cujos fundamentos e práticas têm tido destaque crescente no comentário crítico contemporâneo.
Quarto, o sempriterno desconcerto, quando não deslumbramento, que estas literaturas suscitam enquanto recriação ou revelação de realidades que encerram dentro de si o que há de mais surpreendente, imprevisível, contraditório, inaudito, inapreensível, dramático e risível da condição humana. No caso moçambicano, muito do sucesso, sobretudo no exterior, de escritores como Mia Couto ou Paulina Chiziane, será certamente devedor dos índices de estranhamento, quando não de novidade (agora, cada vez menos, obviamente)  que a escrita de ambos suscita.
Quinto, a aguda, indisfarçável e crescente crise de valores a que se assiste nas nossas sociedades, a quase todos os níveis  e que, derivada de vários  e complexos circunstancialismos, concorre para uma desertificação espiritual, sobretudo entre os jovens, o que conduz à mobilização dos escritores no sentido de fazerem da literatura um exercício de pedagogia ética e cívica, numa deliberada busca de uma ordem e de um sentido existencial que acaba por estar inevitavelmente ancorado numa ideia de cultura que recupera e projecta valores de referência e de estabilidade, em que a evocação das tradições joga um papel importante.
Vistos quer isoladamente quer no seu conjunto, pensamos serem estes alguns dos factores que concorrem para uma determinada arquitectura criativa e crítica no espaço literário de língua portuguesa, sobretudo quando África, Moçambique, em particular, enquanto vivência e enquanto representação, surge como tema, motivo e contexto.
Atento a toda esta problemática, muitas vezes demasiado empolada, Michael Chapman (2003), da Universidade de Natal, na África do Sul, alerta-nos para o facto de que o predomínio das práticas culturais na discussão sobre a literatura e  sobre a criação artística, em geral, não deve ser visto como uma exclusividade africana. E esta afirmação tem pertinência irrecusável se considerarmos, tal como Terry Eagleton (2003: 17) que a cultura, afinal, “corporifica nossa humanidade comum”.
Na verdade, olhando, para o percurso de outras literaturas, como sejam as latino-americanas e mesmo as do Ocidente, não é difícil reconhecer, por exemplo, como essa questão aflora, em diferentes momentos, com contornos muito salientes, quando não, nalguns casos, com carácter obsessivo. Lembremo-nos do romantismo, na sua vertente mais nacionalista e revivalista ou na sua exploração do popular e do exótico, do modernismo brasileiro, e do pós-modernismo, com os post-colonial studies.
Contudo, pelo simples facto de as literaturas africanas terem surgido em situação de domínio colonial e na tentativa de procurarem afirmar um universo estético próprio e que incorpora e celebra tudo o que o Ocidente ignorou ou subestimou, acabaram essas mesmas literaturas por fazerem da escrita não só um acto cultural, mas também político.
Facto bem identificado por alguém como Chinua Achebe, no já distante ano de 1965, no célebre ensaio “The Novelist as a Teacher”, em que nos apresenta o escritor africano imbuído de um didactismo messiânico, quer pela função desocultadora dos seus textos quer por poder demonstrar que os africanos não são o lado escuro e obscuro da psique humana.
Analisar em que medida a estetização do elemento cultural se institui como valor dominante nos processos de criação e de crítica literária no universo das literaturas africanas é, pois, o objectivo desta reflexão. Isto é, discutir como essas mesmas literaturas particularizam a “nossa humanidade comum” a que se refere Eagleton (2003: 29) e que contribuem, segundo o mesmo autor, para a “colorida tapeçaria da experiência humana”.




IDEIAS - Tânia Tomé: O desabrochar de um canto poético
NAS literaturas africanas de língua portuguesa sempre houve discrepância entre a quantidade de vozes femininas actuando nas letras. No caso de Moçambique, dois nomes do período colonial durante o século XX foram de enorme relevância, falamos de Noémia de Sousa e Glória de Sant’Anna. Apesar desses dois nomes históricos, veio a independência do país em 1975 e as décadas de 1980 e 1990, mas poucos nomes femininos despontaram no panorama literário moçambicano, apesar do sucesso da prosa de Paulina Chiziane para além das fronteiras da nação.
Entretanto, onde se encontra a poesia moçambicana de autoria feminina do pós-independência, mais precisamente da virada do século XX para o XXI? Em longo artigo sobre a poesia moçambicana contemporânea, a ensaísta brasileira Carmen Lucia Tindó Secco fez as seguintes considerações:
Ao tecermos o perfil da poesia moçambicana contemporânea, detectamos uma ausência quase completa de mulheres-poetas. Ecoam ainda vozes antigas: algumas questionadas, em determinados aspectos, como a de Noémia de Sousa (...) e outras reverenciadas, entre as quais a de Glória de Sant’Anna. (...) Clotilde Silva (...) é pouco conhecida fora de Moçambique. Concluímos, assim, que, de modo geral, na produção lírica da pós-independência, não há, por enquanto, como já se delineia com visibilidade na ficção, com Paulina Chiziane, Lília Momplé e Lina Magaia, uma significativa dicção ‘no feminino’. Na poesia, o grito de ‘ser mulher’ ainda é o de Noémia de Sousa, de Glória de Sant’Anna. (SECCO, p. 299-300).
Os pertinentes comentários de Tindó Secco são confirmados quando nos deparamos com a relação de títulos publicados na edição comemorativa de 25 anos da Associação dos Escritores Moçambicanos, de 2007. Nela, constatamos a presença dos nomes poéticos consagrados no passado como Noémia de Sousa e novas vozes, casos de Clotilde Silva, Isa Manhinque, Rinkel e Sónia Sulthuane. Ou seja, é realmente tímida a presença de poetisas com a estampa do livro.
Felizmente, uma novíssima voz feminina moçambicana revelou-se neste último decênio. A consagrada cantora e declamadora Tânia Tomé, nascida em Maputo (1981), lança em 2008 o seu livro de estreia em poesia, “Agarra-me o sol por trás”, que, em 2010, ganha uma edição brasileira, agora intitulada “Agarra-me o sol por trás (e outros escritos e melodias)”, organização e prefácio de Floriano Peixoto, ilustrações de Eduardo Eloy, textos críticos de António Cabrita e Francisco Manjate, e uma entrevista da poetisa ao organizador. Trata-se de uma caprichada edição da editora paulista Escrituras, inserida na coleção Ponte Velha, que publicou anteriormente “O osso côncavo e outros poemas”, antologia poética de Luís Carlos Patraquim, “Lisbon Blues seguido de Desarmonia”, de José Luiz Tavares, e “A cabeça calva de Deus”, de Corsino Fortes. Os dois últimos são poetas cabo-verdianos.
A poesia de Tânia Tomé desvela uma nova dicção erótica prenhe em sinestesia, em que a metapoética se torna presente em uma linguagem que mostra o árduo e doloroso trabalho de sua tessitura poética, como em “Poema Impossível”: “Meu corpo impossível/ não me comas inteiro/ o possível poema/ que me subsiste/ deixa/ que deságue,/ que no abrigo/ os seus pedaços/ façam sentido./ Porque aí/ onde mais me dói escrever/ reside a alma.” (TOMÉ, p. 2010, p. 40). Desejo ininterrupto de entrega ao amor: “Não me salves, selva-me” (idem, ibidem, p. 17) e erotização moçambicanamente índica atravessando o jazzístico som do corpo do sujeito lírico: “E tu comigo, cá dentro, lá fora/ amando-me na medida do ritmo/ de um jazz cálido frenético./ Abraço do Índico, o piano/ atravessa as fronteiras que nos distam,/ recria o sopro do teu sax/ no meu corpo” (idem, ibidem, p. 48). Poesia que desabrocha um novo cântico, um novo ser a descobrir: “e não me perguntes/ quem é esta mulher/ que cresce comigo/ nas raízes profundas/ da flor do meu corpo” (idem, ibidem, p. 30).
Viagem ao âmago do ser, a poesia brota de uma vontade visceral e insana ao lapidar o “osso das palavras/ (...) uma asa cede-me a loucura/ e a noite me engole nesse desespero alucinante” (idem, ibidem, p. 13). Força criativa erotizando a linguagem, “despindo os versos um a um no centro deste poema” (idem, ibidem, p. 15), a nudez descontrolada do sujeito lírio manifesta-se na ânsia voraz de escrever, “e há um desejo insano de desfigurar a branca página” (idem, ibidem, p. 15).
Insanidade que conduzirá o sujeito lírico para se desprender da matéria à procura dos elementos do ar, signo da liberdade, da transcendência, é a poesia na busca da ampliação dos sentidos do verbo poético e surge a indagação: “Mas em que lugar da asa/ a palavra poderia ser mais bela?” (idem, ibidem, p. 41). Entretanto, não há resposta, há inquietação, há a incessante carpintaria da palavra e “o voo/ vai completamente fora/ da asa” (idem, ibidem, p. 26) para dizer o indizível. As palavras, tais quais as conhecemos, não cabem mais em seu discurso, por isso o uso de neologismos (cantoema, reflesou, amortradoxo, showesia) tenta suprir a necessidade do sujeito lírico. Sobre o sentido das palavras no poema, Octavio Paz afirma que:
“um poema que não lutasse contra a natureza das palavras, obrigando-as a ir mais além de si mesmas e de seus significados relativos, um poema que não tentasse fazê-las dizer o indizível, permaneceria uma simples manipulação verbal. O que caracteriza o poema é sua necessária dependência da palavra como sua luta por transcendê-la. (PAZ, 1972, p. 52).
E é na tentativa de expressar o indizível que as palavras transcendem imagens inusitadas em metáforas insólitas e impactantes, típicas do surrealismo, reveladas na veemência do poema “Abismo sol adentro”: “Agarra-me/ o sol/ por trás.// Escuta no vento/ a tua mão/ secreta” (TOMÉ, p. 2010, p. 19).
Em depoimento constante no livro, Tânia Tomé afirma que “a música influencia muito na minha poesia, não só nas palavras, mas na escolha das palavras que vêm a seguir, é tudo uma questão musical, é um processo muito natural” (idem, ibidem, p. 107). Seu sujeito lírico procura unir a música e a poesia para cantar a sua terra moçambicana: “Um cântico inteiro em abraços de terra nos lábios/ o poema que ainda irei escrever/ marrabentando-me/ urgente” (idem, ibidem, p. 63); no envolvimento com o seu chão e na valorização dos aspectos culturais tradicionais da dança, da música e seus instrumentos: “Na gala-gala percorrendo-me o tronco/ lentamente/ no toque das timbilas nas mãos,/ ecoando cântico chamamento dos tambores/ E no embrião dos mpipis/ mergulhados nas sílabas das cores deste sangue” (idem, ibidem, p. 55).
Pertencimento ao país que faz recordar o poeta maior José Craveirinha e o seu célebre poema “Hino à minha terra”, amor à terra que é renovado por essa jovem poetisa com o canto intitulado “Meu Moçambique”: “Eu sei-me Moçambique,/ no cume das árvores, na sede incontinente/ da minha falange, do Rovuma ao Incomati,/ no xigubo terrestre dos pés descalços/ e em todos os tambores que surdem/ das mãos coloridas nos braços em chaga” (idem, ibidem, p. 47).
“Escrevendo muhipiti/ no surrealismo do Índico” (idem, ibidem, p. 69), versa o sujeito lírico. Para além do surrealismo por vezes visceral como o de Craveirinha, encontramos ressonâncias de outros grandes poetas moçambicanos, ora nos cantos à ilha de Moçambique e referências ao Índico a recordar Rui Knopfli, ora na lírica erótica e nas citações aos elementos da natureza como o ar e a água de Eduardo White e Luís Carlos Patraquim.
Na confluência das artes que a poesia de Tânia Tomé desvela um mundo de letras sonoras, de um erotismo exacerbado e de uma entrega violenta para ressemantizar a palavra. Em suas metáforas dissonantes e viscerais, com poemas que arriscam e transmitem a inquietação de uma poetisa que procura tirar da inércia os sentidos desgastados do verbo, este “Agarra-me o sol por trás (e outros escritos e melodias)” de Tânia Tomé surge como promessa de uma voz feminina que veio para ficar na poesia moçambicana contemporânea.
BIBLIOGRAFIA
ASSOCIAÇÃO DOS ESCRITORES MOÇAMBICANOS. Memorial 25 anos. AEMO, 2007.
PAZ, Octávio. A consagração do instante. In: Signos em Rotação. São Paulo: Perspectiva, 1972.
SECCO, Carmen Lucia Tindó. Paisagens, memórias e sonhos na poesia moçambicana contemporânea. In: A magia das letras africanas – ensaios escolhidos sobre as literaturas de Angola e Moçambique e alguns outros diálogos. Rio de Janeiro: ABE Graph Editora, 2003. pp. 280-306
TOMÉ, Tânia. Agarra-me o sol por trás (e outros escritos e melodias). São Paulo: Escrituras Editora, 2010.

  • Ricardo Riso
Fonte: http://www.jornalnoticias.co.mz

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