A CRIAÇÃO LITERÁRIA E A INCONTORNABILIDADE DA CULTURA
As literaturas africanas têm, nesta conformidade, conquistado e alargado os seus universos de recepção integrando, por um lado, toda uma tradição estética assimilada ou importada e, por outro, inscrevendo elementos de ordem linguística, filosófica, estética, cultural e vivencial decorrentes da pertença dos escritores a um espaço físico e simbólico determinado. E é, precisamente, a necessidade, muitas vezes compulsiva, de repensar, valorizar e consagrar esse mesmo espaço que a sua representação se torna causa e efeito do acto de criação literária.
Antes de avançarmos, importa sublinhar que dificilmente nos poderemos cingir a uma definição estável e cabal de cultura, termo oscilando entre a maleabilidade e a rigidez conceptual, entre a amplitude e a restrição de sentido, e que, cada vez que o interpelamos e escavamos, nos oferece mais inquietações e indefinições que respostas e certezas.
A este propósito, Margaret Archer, citada por Eagleton (2003), é peremptória ao concluir que o conceito de cultura exibiu o mais fraco desenvolvimento analítico de entre todos os conceitos-chaves das ciências sociais e desempenhou o papel mais descontroladamente vacilante na teoria sociológica.
Neste sentido, ao falarmos das dominantes culturais que presidem tanto a criação literária como a sua exegese, temos em conta não só as particularidades que o termo cultura sugere, mas também a sua amplitude conceptual que acaba por fazer caber, entre outros, o histórico, o social, o religioso, o político, o linguístico, etc.
Por outro lado, há, talvez, na nossa reflexão, algo de redundante se acedermos a que a literatura, enquanto sistema de comunicação e de significação, é já, de per si, um acto cultural. Isto é, por um lado, ela se inscreveria num conjunto de práticas que teriam a ver com modos de vida, formas de comportamentos, ou simplesmente e segundo Clifford Geertz, redes de significação nas quais está suspensa a humanidade, e a que chamariamos, lato sensu, a Cultura. Por outro, seria ela própria uma realização específica, adjectivável, que designariamos, por exemplo, por cultura literária.
Temos claramente consciência de que se, por um lado, é incontornável e indesmentível a forte presença de componentes culturais de várias origens no escritor africano (a língua, os modelos estéticos, os valores éticos, mundividências, etc), por outro lado, quando falamos do espaço cultural e literário, referimo-nos a um espaço dinâmico, plural, diverso, oscilante e fragmentário. A incidência desses elementos tanto na criação como na crítica literária empurra-nos forçosamente para a questão da função que ambas desempenham.
O processo de criação, em especial para o autor africano, é um jogo às vezes difuso, às vezes inconcluso, entre uma memória individual e outra social, entre a necessidade de afirmação de um território de pertença e de outro, a que amiúde aspira, mas que parece querer escapar-se-lhe.
Dois autores que, no actual universo literário moçambicano, mais corporizam esta dualidade são Aldino Muianga e Paulina Chiziane. Mais amarrado ao conto, o primeiro, mais virada para o romance, a segunda, ambos fazem da escrita acção e revelação de um território cultural intensamente marcado quer por uma memória mítica quer pelos imponderáveis apelos do quotidiano.
Enquanto que Aldino encontra nos domínios suburbanos e rurais espaços diegéticos priveligiados dos seus contos e romances para inscursões às vivências do quotidiano, ao mundo dos mitos e das tradições, Paulina, programaticamente, define temas em que o resgate cultural é pronunciado, mesmo quando posto em questão. Tais são, entre outros, os casos da poligamia, do lobolo, da feitiçaria, etc. Basta, para comprová-lo, seguir o curso da sua criação romanesca com obras como Balada de Amor ao Vento, Sétimo Juramento e Niketche.
E na representação das oralidades (rurais, urbanas e suburbanas), o que estes e outros autores moçambicanos acabam por projectar são, muitas vezes, as tensões e as contradições entre a modernidade e a tradição, o passado e o presente, o local e o global.
Ao sobrevalorizar o elemento cultural, a própria escrita, enquanto criação, acaba, invariavelmente, por assumir uma função crítica. Isto é, o autor africano dando-se conta da desagregação da civilização real de que faz parte, investe na reivindicação de uma ordem cultural que comporta elementos e valores de estabilidade e dignidade, numa atitude interventora e redentora.
Há, neste particular, além de um agudo sentido crítico do presente que se vive, a representação de outras racionalidades, quando não de uma religiosidade difusa, discernível no recurso persistente ao sobrenatural e aos antepassados, como se reconhece nos autores acima referidos ou em Marcelo Panguana com O Chão das Coisas (2003), e, até certo ponto, em Mia Couto. Com o seu romance de estreia, em 2003, As Duas Sombras do Rio, João Paulo Borges Coelho acabará por trilhar pelo mesmo diapasão.
Não podemos, contudo, de reconhecer que, na relação com os imaginários representados nestes e noutros autores africanos, por eles próprios serem produtos de prolongados e acentuados processos aculturativos, encontramos, quase que simultaneamente, segmentos de identificação, contradição ou, mesmo, conflito, que os colocam, algumas vezes, numa condição verdadeiramente dramática, quando não grotesca.
*Comunicação apresentada ao Simpósio “Interprenetração da Língua e Culturas de/em Língua Portuguesa na CPLP", São Vicente, Cabo Verde, Março de 2008.
- Francisco Noa
Paulina Chiziane - Mulheres escritoras continuam a reproduzir modelo machista
Para a autora, que participou num painel intitulado "O papel da mulher na literatura e na vida em África, Cuba e Brasil", não basta ser mulher para ser capaz de escrever uma literatura mais "holística" e "dignificante".
É preciso fazer uma "descolonização" do modelo machista, defendeu.
"Nós, quando vamos descrever, o único modelo que conhecemos é o modelo machista e se não nos apercebemos, fazemos a reprodução desse modelo. Muitas vezes surpreendo-me ao ver mulheres a usarem a linguagem dos homens", lamenta.
Chiziane citou como exemplo textos escritos por mulheres nos quais as personagens femininas aparecem descritas meramente pelos seus atributos físicos, como na maior parte dos romances masculinos.
"Para mim, uma mulher é um mundo de pensamentos, de sentimentos, de sonhos, de realizações, de frustrações... Se eu tenho uma personagem mulher, significa descrever todo esse universo, mas muitas escritoras, quando vão descrever outras mulheres, imitam os homens", reforça a autora de "Niketche".
Paulina Chiziane esteve pela primeira vez no Rio de Janeiro exclusivamente para participar no Back2Black, onde lançará a 21 de Dezembro, o seu próximo romance "Na Mão de Deus".
Tantos anos de teatro o mesmo desejo: fazer bem
Tributo a Saramago em Maputo
José Saramago, por muitos considerado o responsável pelo efectivo reconhecimento internacional da prosa em língua portuguesa, é a figura homenageada na inauguração da terceira temporada das “Noites de Abraços”.
O tributo a Saramago será precedida de projecção de um documentário “Ensaio sobre Teatro”, de Rui Simões, uma adaptação teatral pelo “Teatro O Bando” da obra "Ensaio sobre a Cegueira", do escritor José Saramago, que irá acontecer no mesmo local.
José Saramago, nasceu em Azinhaga, e perdeu a vida a 18 de Junho do ano em curso.
Escritor, argumentista, jornalista, dramaturgo, contista, romancista e poeta, José Saramago recebeu o Prémio Nobel da Literatura em 1998, tendo, antes disso, ganho o Prémio Camões, que é o maior e mais importante galardão literário da língua portuguesa. Entre as suas principais obras destacam-se “Memorial do Convento”, “O Evangelho Segundo Jesus Cristo”, “Jangada de Pedra”, “Ensaio sobre a Cegueira” e “A Caverna”.
Entretanto, após prestar tributo a José Saramago, o programa “Noite de Abraços” prosseguirá com homenagens a Carlos Cardoso, que terá lugar no dia 18/11/10, posteriormente serão, entre outros, distinguidos Paulina Chiziane e Dilon Djindje.
IDEIAS - Escritores pela paz: Mia, Ungulane e Paulina num apelo a Dhlakama
“Nos últimos anos, nós moçambicanos, fomos capazes de produzir uma conquista valiosa e rara: a Paz. Essa conquista fez crescer, em todo o mundo, o respeito por Moçambique. Como escritores sentimos orgulho de fazer parte dessa heróica epopeia. Essa obra de reconciliação também lhe pertence a si e à organização política que dirige.
A Paz e a Democracia em Moçambique não andam à procura de filiação paterna. Nenhuma pessoa, nenhuma força política se pode intitular pai ou proprietária dessas conquistas que apenas pertencem ao povo que superou o passado e se fez construtor do presente”.
Na mesma missiva, os escritores apelam ao presidente da RENAMO a procurar ficar na história de Moçambique como alguém que ajudou a consolidar o processo de pacificação e o reencontro dos moçambicanos consigo mesmos, ao mesmo tempo que sublinham que o país não pode ficar refém da violência.
“Os moçambicanos sabem que serão eles (e não os políticos que encomendam os conflitos) as maiores vítimas da violência. Os nossos compatriotas anseiam demasiado o futuro para tropeçarem no medo do passado. Os moçambicanos esperam dos dirigentes políticos que façam política. E que façam política para servir o povo e não para se servirem dele, usando-o como carne para canhão. Os moçambicanos, de todas as cores políticas, estão unidos numa única certeza: a guerra, nunca mais”, concluem.
"Niketche": um romance que vale a pena ver... no teatro
Literatura lusófona em debate
OBRAS MAIS PROCURADAS
Quanto ao campo ficcional, Tavares disse que embora ainda não tenham feito nenhum balanço, a tendência que se regista é de uma grande procura de obras de Ungulani Ba Ka Khosa, Mia Couto e Paulina Chiziane. Por outro lado, está a literatura biográfica, como, por exemplo, os livros de líderes mundiais como Fidel Castro, Barack Obama, ou mesmo o livro do ex-Presidente da República, Joaquim Chissano, intitulado “Vidas, Lugares e Tempos”, recentemente lançado.
“Os livros sobre Relações Internacionais não têm uma grande procura, quando comparados com os outros, embora tenham também o seu público”.
A nossa fonte disse que o tipo de clientes que a Minerva Central tem dividem-se em três categorias, designadamente os residentes que são aqueles que quer haja feiras ou não estão sempre presentes para comprar livros. Há depois os que têm uma obrigação com a academia e que, por via disso, têm que comprar livros. E, normalmente, a procura é mais pelas obras de carácter técnico. E por fim existe aquele grupo de clientes que vai àquela livraria por mera curiosidade ou porque quer oferecer um presente a alguém especial e que gosta de livros. Nesta categoria de clientes estão aquelas pessoas que igualmente compram livros para se divertir aos finais de semana.
REPORTAGEM - Cabo Delgado em festa: Muita cultura no festival Tambo/2010
Amanhã é o dia em que subirão ao palco o próprio Tambu Tambulani Tambu (TTT), com as suas danças típicas tradicionais da região, o PRONANAC, um agrupamento teatral do distrito costeiro de Mecufi, por sinal formado com a assessoria de constituintes do TTT, bailarinos vindos de Maputo, o Rumba do bairro do Wimbe, Isabel Novela, de Maputo, um grupo de teatro sul-africano, entre outros artistas.
Para acompanhar os shows musicais, já se encontra em Pemba a banda Kinamatamikuluty, virada para a música tradicional, procedente da capital do país, que estará lado a lado com o agrupamento do Tambu Tambulani Tambu, na sua vertente musical, bem assim dos outros conjuntos locais de música ligeira tradicional.
Na segunda-feira, no âmbito do festival, decorriam os workshops de artes plásticas, ao mesmo tempo que iam chegando os convidados tanto de dentro como de fora de Cabo Delgado, incluindo de países estrangeiros, numa azáfama em que todos os caminhos iam ter ao bairro de Nanhimbe, num campus cultural feito de palhotas, especialmente construídas para a recepção dos hóspedes, tendo no interior camas de Cambala (quitandas), onde o tradicional não foi muito afectado.
Foi necessário alugar mais “quitandas” da população ciurcunvizinha, porque aquelas de que dispõe o centro cultural Tambu não eram suficientes. Bem assim, há artistas hospedados em casas alugadas à população do bairro de Nanhimbe.
“A questão logistica é o calcanhar de Aquiles”, diz o director executivo do Tambu Tambulani Tambu, o actor Victor Raposo, que acrescenta ter sido motivo para que alguns convidados nacionais não viessem, porque, segundo ele, para lá das despesas de deslocação, há o pagamento dos “cachets” pelas actuações, num evento para o qual nada se cobra aos espectadores.
Entre as ausências, pode se considerar de vulto da escritora Paulina Chiziane, que estve na edição do ano passado, à frente de quem estaria o workshop sobre literatura. Ela não vem a Cabo Delgado, conforme adiantou Victor Raposo, por motivos familiares. O tema que caberia à autora de “Niketche” será discutido no seio dos artistas e jovens escritores locais espalhados pelas universidades aqui representadas.
Os turistas é que encontraram o seu local de diversão, pois mesmso aqueles que se encontram em Pemba, cumprindo os seus próprios programas de lazer, já acharam o caminho que todos os dias os conduzam aonde podem beber e comer da boa cultura pembense, onde por sua vez deparam com estrangeiros que não se quiseram hospedar nos hotéis que a Baía de Pemba tem, preferindo alojar-se em casas rústicas da gente da terra.
“Estamos à espera do prato ‘quente’ da dança”, dizem os populares, que para si o festival vai ser aí, que contará com os grupos Mapiko de Mueda, de canto e dança do distrito de Chiúre (preparado pela coreógrafa da Companhia Nacional de Canto e Dança Pérola Jaime), para além dos donos da casa, o Tambo Tambulani Tambo, ao que se seguirá a visita ao histórico bairro de Paquitequete, onde assistirão à actuação do grupo de dança Damba.
Falando em visitas, os participantes ao quinto festival Tambo terão ainda a oportunidade de passar pela Escola de Música Edunia, que tem pela frente o conhecido músico Imamo Hajee, pelo centro cultural Banguia “Mapiko Moderno”, pela cooperativa de escultores “Bela Baía”, a de artesanato “Karibu Wimbi” e “Uiuipi”, ambos na cidade de Pemba.
Já está em Nanhimbe o professor e saxofonista Orlando da Conceição, vindo de Maputo, e ainda se esperava a presença de nomes como M’bila Player, de Harare (Zimbabwe), Umkhathi Theatre Works, de Bulawayo ( também no Zimabwe), ainda daquele pais vizinho, Isabel Novela e Cuca, de Maputo, miss Mamy, de Nampula, o agrupamento “Três Putos”, de Namuno, o grupo de canto e dança de Chiúre, mais outros grupos locais.
“Diariamente vamos receber entre 70 a 90 artistas, porque nem em todos os dias estarão todos juntos, a questão logística obriga-nos a que cada um venha cumprir o seu papel no programa e, se quiser ficar, até pode, mas não às contas da organização. Há os que amanhã vão e outros chegam simplesmente para se integrarem no programa, cumpri-lo e voltar”, comenta Victor Raposo, que diz que o Tambu Tambulani Tambu ainda continua a pedir apoios de diferentes organizações e agências para minorar o peso decorrente da organização dum evento qual este.
O teatro, que é um dos pratos fortes da associação cultural organizadora, vai também merecer, para além da actuação propriamente dita, de um workshop, que se espera venha a ser moderado por Manuela Soeiro, tendo como participantes Given Jikwana, da África do Sul, Elizabeth Muchemwa, do Zimbabwe, entre outros, incluindo uma representação do Teatro Embassy, da Holanda.
Os saraus de poesia, as exposições de artes plásticas e artesanato, para além dos concursos de culinária, vão completar os oito dias de cultura que, mais uma vez, o Tambo Tambulani Tambo decidiu trazer ao publico pembense e não só, nesta sua quinta edição do festival que leva o seu nome.
Há uma exposição que se espera venha atrair muitos apreciadores, entre outras de artes plásticas, escultura e outras. Trata-se de chinelos e sandálias tradicionais, que o jovem José Cheia, associado ao TTT e está a fazer de alguns meses para cá pretendendo expor aos participantes à quinta edição do festival Tambo nos proximos dias. São feitos a base de pele e manualmente concertados obedecendo diferentes estilos.
- Pedro Nacuo
DA TRANSVERSALIDADE E GESTÃO CULTURAL
É costume dizer-se que onde está o homem está a cultura. Conhecimento local, sistemas de crenças locais, práticas locais, em suma culturas locais jogam um papel importante na orientação da acção humana e na consolidação da integração social. De facto, longe de constituir um obstáculo ao progresso, as culturas locais revelam sabedoria local, que pode ser usada na promoção do bem-estar social da humanidade. Deste modo, não se pode falar de nenhuma área de desenvolvimento político, económico e social sem incluir a cultura. A cultura é por assim dizer a chave do desenvolvimento.
Sob o ponto de vista institucional, a cultura como factor de desenvolvimento é articulada por quase todos os sectores da governação desde a educação, justiça e direitos humanos, planificação e desenvolvimento, ciência e tecnologia, saúde e saneamento, habitação, meio ambiente, agricultura, entre outros. É nesta interacção que a cultura responde pela produção do conhecimento, pela educação, pela recreação, pelo deleite, e pelo desenvolvimento económico e social.
Foi neste contexto que a década oitenta do século passado testemunhou os esforços das Nações Unidas em proclamarem a Década Mundial para o Desenvolvimento Cultural (World Decade for Cultural Development) em 1988. Esta proclamação incentivou reflexões e práticas sobre o desenvolvimento da relação entre cultura e desenvolvimento nos programas de desenvolvimento e cooperação, na base do entendimento de que o desenvolvimento económico e tecnológico não podia ser dissociado do contexto cultural em que está inserido. (Ruijter, 1995:6)
De facto, a cultura joga um papel importante nos processos de desenvolvimento desde a formulação dos planos globais e sectoriais, passando pela definição de programas e estratégias a nível local, regional e na concertação global, incluindo a cooperação internacional. No campo específico dos artistas, o desenvolvimento de indústrias artísticas e culturais e a interacção com o empresariado, constitui uma grande oportunidade para a afirmação da cultura como instrumento de combate à pobreza e, quiçá, veículo de desenvolvimento.
O desenvolvimento de indústrias culturais implica uma mudança de atitude por parte dos fazedores da cultura de modo a estimular o consumo ou mudança de padrões de consumo de potenciais consumidores. Segundo Virgínia da Silveira Fonseca, as indústrias culturais são particularmente organizações empresariais que passaram a explorar o negócio de comunicações e cultura, transformando o que é por natureza um bem cultural numa mercadoria. A evolução histórica deste paradigma parece datar do século XIX com o surgimento do capitalismo, tendo se expandido na Europa após a II Guerra Mundial. Na prática, este fenómeno influenciou o surgimento de empresas culturais, explorando numa primeira fase a ‘mídia impressa’, i.e. o jornalismo, que promovia outros bens com uma crescente vinculação à publicidade, ao que mais tarde se juntou a televisão nos anos 50. (da Silveira Fonseca, 2003). No mundo contemporâneo a Internet veio jogar um papel acelerador desta dinâmica empresarial no quadro da globalização.
Hoje a cultura propicia uma interacção entre vários sectores da sociedade incluindo experiências locais e a nível global. Neste contexto, será importante a aceitação da universalização da nossa cultura através do diálogo permanente entre a cultura local, nacional, regional e à escala global. Por isso, acautelados os aspectos perniciosos da globalização, esta deve ser vista como uma oportunidade no reforço da universalização da nossa cultura, através do desenvolvimento de parcerias e exploração de novas tecnologias e do espaço cibernético.
Concordando com estes postulados, a questão que se coloca é como é que ao nosso nível percebemos esta dimensão e a traduzimos na forma de gestão cultural. Qual tem sido a articulação desta transversalidade cultural nas instituições governamentais? Até que ponto os vários actores culturais percebem o seu lugar na dinamização da cultura? Como tem sido a interacção entre o estado e os vários agentes culturais? Em suma quais os desafios a enfrentar na gestão cultural?
DESAFIOS E PERSPECTIVAS
Apesar de se notar algum esforço na valorização da cultura como parte da construção do conhecimento e desenvolvimento tecnológico nas diferentes esferas de gestão económica e social a nível das instituições políticas e governamentais, a cultura como parte integrante da educação cívica e formação de personalidade, e instrumento de combate a pobreza e promoção do desenvolvimento, continua a enfrentar grandes dificuldades.
O diagnóstico feito na década noventa do século passado no quadro da 1ª Conferência Nacional de Cultura, indicou algumas linhas cujo significado continua actual em função das inquietações levantadas pelo público. Para o efeito vou, citar algumas reflexões e conclusões sistematizadas por Carlos Siliya na sua obra publicada em 1996 que na minha opinião continua bastante actual e deveria servir de instrumento base para a reflexão sobre a gestão cultural, senão vejamos o que ele nos diz:
(…) nos discursos e simpósios nacionais, talvez se tenham constatado as referências sobre a cultura e a sua importância. Por esta razão torna-se importante e necessário que se possam alargar os debates sobre as questões culturais a vários níveis, para se aprofundar o conhecimento adequado sobre a cultura e a sua complexidade. Uma das formas seria a criação de instituições de ensino e estudo das questões sócio-culturais, tais como a criação de escolas de Arte, nomeadamente as escolas de música, dança, teatro, e artes visuais, escolas de educação física e instituições especializadas de estudos antropológicos e das ciências sociais em geral. As instituições de ensino do género multiplicarão os intervenientes sociais nos estudos do desenvolvimento de Moçambique. (Siliya, 1996:277).
Ouvem-se por todo o lado reclamações de que o Estado não tem apoiado os intervenientes culturais na promoção das actividades artísticas e culturais em Moçambique. Fica-se sempre com a ideia de que o Estado deverá assumir tarefas executivas no trabalho cultural. Por esta razão torna-se urgente que seja aclarada a função do estado na promoção cultural. Espera-se que ele dê maior ênfase à definição de políticas específicas de desenvolvimento cultural, à promulgação de leis que protejam toda a criação e promoção artísticas e que sejam estimulados os investimentos para a área cultural. Neste mesmo âmbito, deve-se estimular o nascimento e a actividade de instituições e associações culturais que se dediquem ao desenvolvimento do trabalho cultural na sociedade e promovam as várias expressões culturais nas comunidades do nosso país. O trabalho cultural é feito pela sociedade, que é a real produtora da cultura e o Estado não deverá fugir à sua responsabilidade de orientação e direcção da sociedade, projectando o verdadeiro desenvolvimento global do país e a canalização dos recursos necessários para o efeito.” (Siliya, 1996:278).
Parece que concordamos com o Siliya e as percepções das pessoas hoje confirmam a validade dos seus postulados num misto de optimismo e cepticismo. Ao longo da semana cultural fui ouvindo e lendo dos midia algumas percepções das pessoas sobre a gestão cultural que gostaria de registar para a nossa reflexão:
Com a realização da conferência espero soluções práticas para problemas concretos. Um artista sai para fazer trabalho numa província vive como marginal. Contudo, existem casas de cultura, infraestruturas, outras casas que podiam estar ao dispor deste artista. Tratam-nos como marginais. Sinceramente, um país sem cultura não existe. É necessário criar condições. Na altura, o Ministério da Cultura não tinha recursos e ria-me pois questionava para que servia. Agora que é Ministério da Educação e Cultura, a situação está pior. Nós produzimos mas passamos fome. É preciso olhar para a questão dos direitos do autor. Trabalhamos e somos tratados como marginais. A cultura é um monstro adormecido mas não há um programa com sequência organizado. A questão da política do livro é outra. Pode-se traçar metas porque políticas temos muitas. É necessário alocar um fundo x na produção de livros infantis e colocar pessoas com competências para isso. (Paulina Chiziane, Jornal Domingo, 10.05.09.).
A lei de mecenato tem sido uma grande bandeira do nosso estado. Seria uma oportunidade de os fazedores da cultura atingirem outros patamares, mas na verdade a lei de Mecenato é inexistente em termos pragmáticos. É um fracasso. Espero que a conferência traga resultados concretos, objectivos, como por exemplo olhar-se para a lei e adequá-la aos anseios dos artistas. A lei é aplicada esporadicamente e os mecenas preferem continuar a pagar impostos do que apoiar a cultura. E cabe aos fazedores da cultura serem proactivos”. (Jorge Oliveira, Jornal Domingo 10.05.09)
Parece concordarmos com estas opiniões. Porém, é licito reconhecer os passos dados desde a 1ª conferência e os desafios que ainda se impõe ultrapassar. De facto, algumas destas preocupações foram sendo ultrapassadas enquanto outras permanecem por resolver ou melhorar no âmbito da gestão cultural. É interessante notar que apesar da inquietação que existe na sociedade sobre o enquadramento do sector de cultura na estrutura governamental, o mandato do governo prestes a terminar em que a cultura foi integrada com a educação, logrou alguns êxitos que é correcto assinalar, particularmente na promoção de actividades artísticas e culturais, incluindo a organização de festivais nacionais de cultura, proposta de leis sobre museus e monumentos e a capacitação das instituições para o melhoramento da gestão e preservação do património cultural. A criação do Instituto Superior de Artes e Cultura parece enquadrar-se nesta perspectiva.
No capítulo da preservação do património cultural, realce vai para a construção do monumento alusivo ao II Congresso da Frelimo em Matchedge, Niassa, no âmbito das comemorações dos 40 anos daquela efeméride e a construção do Monumento de Eduardo Mondlane no Museu Aberto de Nwadjahane, Gaza, no âmbito do ano Eduardo Mondlane. A estas realizações também se junta a reabilitação de edifícios das instituições públicas como a Biblioteca Nacional, o ARPAC entre outros, para além dos esforços de reabilitação e restauração em curso na Ilha de Moçambique.
Com a promulgação da Política Cultural e da Lei de Mecenato, aparentemente abriram-se novas oportunidades para os artistas e empresários interagirem perante o papel facilitador do estado através das suas instituições. Iniciativas de apoio através do FUNDAC parece testemunharem algum esforço nesse sentido. Porém, grande parte de grupos culturais e associações artísticas, incluindo instituições de promoção e preservação do património cultural como casas de cultura, museus, arquivos e bibliotecas carecem de mais apoios financeiros. A questão que se coloca é como sairmos deste ciclo vicioso. Acredito que com o novo paradigma de diálogo será possível encontrar formas concretas e pragmáticas de gestão cultural participativa entre as instituições públicas e privadas e os próprios fazedores da cultura. A seguir apresento de forma sistematizada alguns pontos de reflexão e sugestões que poderiam ser adoptadas nesta conferência a saber:
· Necessidade de maior articulação interministerial. Por exemplo o que faz o Ministério das Finanças em relação à lei do Mecenato? O que fazem os Ministérios de Agricultura e do Meio Ambiente na inventariação e protecção das espécies que servem de matéria prima para os artistas?
· Necessidade de maior protagonismo dos fazedores da cultura na condução do diálogo com o estado para a implementação prática da legislação. Os artistas devem mudar de atitudes e serem mais proactivos de forma associativa, quebrando o egoísmo e individualismo na busca de soluções que enfermam os profissionais da área.
· Necessidade de maior reforço institucional das instituições públicas de gestão cultural com recursos humanos qualificados, infraestruturas adequadas e orçamentos ajustados; A posição da cultura na estrutura governamental ao nível de base precisa de ser mais visível.
· Melhorar os programas de formação de gestores culturais e garantir a actualização de perfis profissionais (veja por exemplo a figura do site manager).
· Necessidade de desenvolver parcerias locais e internacionais e estimular maior intervenção do empresariado nacional e corporações internacionais, no patrocínio da actividade cultural.
· Estimular a equidade no tratamento das empresas e patrocínio aos artistas (por exemplo proteger os artistas “fracos” ou de menos interesse pelos empresários) evitando a exclusão.
· Encorajar o desenvolvimento de indústrias culturais e mercados culturais; os artistas devem melhorar a organização, qualidade e competitividade no mercado nacional, regional e internacional; devem perceber os instrumentos de planificação e desafios da criação de um bem cultural numa mercadoria.
· Criar instituições de apoio aos artistas na divulgação e marketing das suas obras com patente, no mercado local e internacional, explorando as novas tecnologias de informação; é importante que os artistas estejam organizados em associações criando ‘casas do artista’ ou através de ‘casas de cultura’ onde possam também criar algum valor (casa, transporte, alguma infraestrutura tecnológica, galerias, lojas) que lhes pertence.
· Estimular a criação do estatuto do artista.
· Institucionalizar os festivais de cultura com a criação de gabinetes de gestão.
· Promover a integração de valores culturais e obras de moçambicanos nos programas de ensino, transmitindo valores éticos e morais através da educação cívica.
· Criar um catálogo cultural moçambicano e base de dados institucional, integrando aspectos culturais, a ser veiculado através do portal do Governo ou outro espaço WEB a ser definido para a promoção da cultura moçambicana e apoio à investigação.
O estado deve criar mecanismos para a garantia da protecção de direitos de autor e propriedade intelectual dos produtores culturais.
Valorizar e enaltecer mais figuras que se destacaram como fazedoras de cultura, instituindo prémios ou bolsas ostentando seus nomes.
· Reforçar as parcerias com organizações profissionais congéneres através de organizações da UNESCO, nomeadamente, ICOMOS, ICOM, ICA, IFLA, entre outras.
· Explorar a partilha de espaços Web com a UNESCO e organizações afins na promoção e divulgação do património cultural nacional. Por exemplo o WDL (World Digital Library).
· Criar núcleos históricos e museus locais nas cidades, vilas e autarquias.
· Estimular a promoção do turismo cultural, científico, cinegético e subaquático.
· Educar a população para o consumo dos ‘bens culturais’.
Referências
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Arie de Ruijter and Lieteke van Vucht Tijssen, “Culture and Development: An ambivalent Alliance” in Arie de Ruijter and Lieteke van Vucht Tijssen (eds) Cultural Dynamics in Development Processes, The Netherlands, UNESCO, 1995. pp.4-13.
Carlos J. Silya, Ensaio sobre a cultura em Moçambique,Maputo, 1996.
Claire Smith e Graeme K. Ward (eds) Indigenous Cultures in an interconnected World. Australia, Allen e Unwin, 2000.
Claire Smith, Heather Burke and Graeme K. Ward, “Globalisation and Indigenous Peoples: Threat or Empowerment?” in Claire Smith e Graeme K. Ward (eds) Indigenous Cultures in an interconnected World. Australia, Allen e Unwin, 2000.pp1-26.
Direcção Nacional de Cultura, 1a Reunião Nacional de Museus e Antiguidades: Relatórios e Conclusões, Ilha de Moçambique, (15 a 24 de Julho de 1978).
Direcção Nacional de Cultura, Seminário sobre Preservação e Valorização do Património Cultural, Maputo (21- 25 Janeiro, 1981).
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Howard Morphy, “Elite Art for Cultural Elites: Adding Value to Indigenous Arts” in Claire Smith e G raeme K. Ward (eds)Indigenous Cultures in an interconnected World. Australia, Allen e Unwin, 2000. pp129-144.
Lourenço do Rosário (org), II Congresso sobre a Luta de Libertação Nacional/Guerra Colonial: 27 anos depois a reflexão possível. Maputo, Edições ISPU, 2004. Ver Painel sobre “A Produção Artística e Intelectual no Processo de Libertação Nacional” (intervenções de Gabriel Simbine, Edmundo Libombo, Carlos Siliya, Sérgio Vieira, etc)
Jan Nederveen Pieterse “The Cultural Turn in Development: Questions of Power” in Arie de Ruijter and Lieteke van Vucht Tijssen (eds) Cultural Dynamics in Development Processes, The Netherlands, UNESCO, 1995. pp. 31-49.
Penny Dransart, “Cultural Tourism in an Interconnected World: Tensions and Aspirations in Latin America” in Claire Smith e Graeme K. Ward (eds) Indigenous Cultures in an interconnected World. Australia, Allen e Unwin, 2000. pp145-166.
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[1] Quero agradecer a colaboração dos colegas na partilha de suas opiniões que serviram para o enriquecimento das minhas reflexões. Porém, a análise feita nesta comunicação é da inteira responsabilidade do autor. Prof. Doutor Gerhard Liesegang, Prof. Doutora Maria Inês N. da Costa, Dr, Gilberto Cossa, Dra Julieta Massimbe, Dr António Sopa e Dra. Matilde Muocha. Agradeço igualmente o jornalista Jeremias Mondlane que colaborou na auscultação da opinião pública.
- JOEL DAS NEVES TEMBE*
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