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IDEIAS - Balada de Amor ao Vento”: feminino e a configuração da moçambicanidade
RESUMO: O presente trabalho tem como objectivo estudar o romance “Balada de amor ao vento” da escritora moçambicana Paulina Chiziane, analisando como a obra aborda a questão das relações de género e como contribui para a reconstrução da identidade moçambicana após o período colonial. Narrado na primeira pessoa por uma mulher, o romance dá voz a uma personagem antes silenciada historicamente e denuncia a condição inferior feminina em Moçambique, desconstruindo signos socioculturais em busca de discutir a realidade vigente e reconfigurando a identidade nacional.
“Balada de amor ao vento”, da escritora Paulina Chiziane, representa um marco na literatura moçambicana. Publicado em 1990, o romance foi o primeiro no país a tematizar o quotidiano do universo feminino, evidenciando signos socioculturais que denunciam o lugar secundário reservado à mulher. Mais do que retratar a situação feminina em um Moçambique colonizado, Paulina Chiziane põe em discussão como as negociações transculturais e as mudanças de sistemas políticos apenas perpetuaram a (Nº 11 | Ano 9 | 2010 | Estudos (1) p. 2) submissão feminina, ao mesmo tempo em que, dando voz a essa personagem marginal da história do país, contribui para a reconstrução da identidade moçambicana no período pós-colonial. Concentraremo-nos, neste estudo, em analisar tais signos e compreender como a autora os desconstrói em busca da reconfiguração da identidade nacional e da vitalização da presença feminina na construção do cenário histórico e cultural de Moçambique.
A história nos é contada pela personagem Sarnau, mulher marcada pelo amor e pelo abandono. Escrito em primeira pessoa, o romance caracteriza-se por um modo lírico de narrar, o que, segundo Inocência Mata, reforça o processo rememorativo. A narrativa tematiza a memória como veículo de revitalização identitária, no caso de Balada de amor ao vento, “uma memória individual que se confronta com os ditames de uma sociedade tradicionalista” (MATA, 2000, p. 136). A personagem inicia a história já envelhecida, saudosa dos tempos de juventude, contrapondo-os com o seu presente, miserável. Ao questionar-se sobre a existência ou não do amor, Sarnau faz uma comparação da mulher com a terra, convidando o leitor a conhecer o universo feminino:
Tenho uma filha crescida que ainda estuda embora já tenha estudado muito. Umdia  disse-me que a terra é redonda. Por fora é toda verde e lá no fundo tem um centro vermelho. Como o melão. Que a terra é a mãe da natureza e tudo suporta para parir a vida. Como a mulher. Os golpes da vida a mulher suporta no silêncio da terra. Na amargura suave segrega um líquido triste e viscoso como o melão.
Quem já viajou no mundo da mulher? Quem ainda não foi, que vá. Basta dar um golpe profundo, profundo, que do centro vermelho explodirá um fogo mesmo igual à erupção de um vulcão (CHIZIANE, 2003, p.12).
A imagem comparativa da mulher com a terra, antes quase exclusivamente vinculada ao projecto nacionalista, vem agora carregada de subjectividade. É sobre a condição feminina no que diz respeito ao casamento, à poligamia, ao adultério que ( Nº 11 | Ano 9 | 2010 ) Estudos (1) p. 3) Paulina se põe a tratar. Com isso, uma personagem antes ignorada pelo discurso dominante ganha voz, reinscrevendo a história sob outra óptica. O foco agora são as relações de género estabelecidas no interior da sociedade, na busca de uma tomada de consciência de que essas relações desiguais são construídas socialmente. Ana Mafalda Leite (2003, p.78), tratando da relação entre questões coloniais e questões patriarcais, afirma que o tratamento dos temas sobre a mulher pressupõe uma visão alternativa e crítica em relação à visão construída por escritores-homens, sendo que a narrativa de género estabelece um diálogo crítico com a narrativa centralizada numa tradição masculina, permitindo, também, um alargamento temático, a partir de dentro, criando uma abertura no cânone literário, em formação. Por sua experiência particular, Sarnau mostra-nos como a mulher é criada para servir ao homem, para suportar sua indiferença, sua agressividade, sua rejeição, como se isso fosse um fardo natural o qual a mulher deve carregar e aceitar. Em várias passagens do romance, a personagem narra não apenas os fatos que comprovam a desigualdade de género, mas também enfatiza o discurso produzido pelos mais velhos e, em especial, pelas mulheres. Ainda que seja a mais atingida com essas práticas, destaca-se, assim, que a mulher é a principal difusora dessa ideologia. Afinal, é a ela atribuída a responsabilidade pela criação dos filhos. Em razão do seu casamento, Sarnau participa de um ritual de preparação no qual as mulheres de sua família juntam-se para dar-lhe o que a personagem chama de “conselhos loucos”:As minhas mães, tias, avós, fecharam-me há uma semana nesta palhota tão quente e dizem que me preparam para o matrimónio. Falam do amor com os olhos embaciados, falam da vida com os corações dilacerados, falam do homem pelas chagas desferidas no corpo e na alma durante séculos, Sarnau, fecha a tua boca, esconde o teu sofrimento quando o homem dormir com a tua irmã mais nova (Nº 11 | Ano 9 | 2010 | Estudos (1) p. 4)mesmo na tua presença, fecha os olhos e não chores porque o homem não foi feito para uma só mulher (CHIZIANE, 2003, p. 44).
A mulher traz no corpo e na alma as marcas dessa submissão secular, tendo-lhe sido ensinada como suportar tais açoites. Embevecida pelo fato de casar-se com o futuro rei da sua tribo, Sarnau demora a compreender o que significam tais palavras, questionando-se pela insistência dos ensinamentos: “Mas por que a tristeza? Não será o casamento um acontecimento feliz?” (CHIZIANE, 2003, p. 46). Quando ela própria experiência essas práticas, Sarnau rememora os ensinamentos na busca de suportar, resignadamente, a sua condição. Ao ver o marido com outra em sua cama, corre para aquecer a água do banho do casal e ao ser chamada, retorna pondo-se de joelhos perante o “soberano”, baixando os olhos “como manda a tradição”:
- A água está pronta?
- Sim, pai.
- Hum, parece que choraste. Morreu alguém?
Arremessou-me um violento pontapé no traseiro que me deixou estatelada no chão.
Minutos depois voltei à posição inicial. Enviou-me uma bofetada impiedosa que fez saltar um dente (...) (CHIZIANE, 2003, p. 56).
No artigo “A escrita no feminino e a escrita feminista em Balada de amor ao vento e Niketche, uma história de poligamia”, Patrícia Rainho e Solange Silva (2007,p.523) afirmam que em Balada de amor ao vento não há questionamento da condição da mulher na sociedade moçambicana, restringindo-se a uma escrita no feminino:... a personagem [Sarnau] não se questiona quanto a certos valores instituídos e se estes limitam ou não as suas escolhas enquanto mulher. Existe apenas a narração de toda uma vida no feminino, através de Sarnau, que é preenchida com o legado (Nº 11 | Ano 9 | 2010 | Estudos (1) p. 5) cultural da oratura moçambicana e um ‘passeio’ pela vida cultural de Moçambique em tempo colonial através daquela personagem feminina, criada por Paulina Chiziane.
Definir toda a condição social apresentada no referido livro como um passeio pela vida cultural de Moçambique parece extremado reducionismo quanto ao discurso construído em Balada de amor ao vento. Se em nível do enunciado Sarnau não questiona explicitamente os valores instituídos pela sociedade na qual está inserida, em nível da enunciação, podemos, sim, identificar a discussão da submissão feminina, o modo como tanto a poligamia como a monogamia submetem a mulher aos interesses masculinos e aos da sociedade em geral, a influência dos mais velhos na vida dos mais novos, a questão da assimilação, a negociação estabelecida entre a cultura tradicional e os diferentes discursos históricos conservando o controle patriarcal exercido sobre as mulheres.
O fato de a narradora ser uma personagem iletrada que vive em um território ainda colonizado também precisa ser considerado. Além do mais, as escolhas narrativas não podem ser pensadas ingenuamente. O tom irónico e satírico utilizado pela autora para narrar os acontecimentos dão a medida da consciência crítica dessas escolhas. O trecho citado acima, por exemplo, em que o marido utiliza-se de ironia para debochar da mulher por seu suposto ciúme, seguido de um pontapé no “traseiro” e uma “bofetada impiedosa” que lhe faz “saltar um dente” não pode ser encarado como simples narração de uma vida no feminino, é também denúncia da realidade da mulher em África. O próprio questionamento que Sarnau se faz sobre o casamento ser ou não um acontecimento feliz aponta para a reflexão sobre a insatisfação da mulher, sobre a desigualdade da relação nessa instituição, além de outros momentos presentes ao longo do romance que despertam tais discussões. Há várias passagens em que a personagem (Nº 11 | Ano 9 | 2010 | Estudos (1) p. 6) se enxerga como uma mercadoria. Sarnau assim descreve o momento da negociação do seu lobolo, embalado pelo mugir das trinta e seis vacas que constituiu o seu pagamento:“[...] Fazem-se cumprimentos e discursos; dinheiros tilintam. Coloca-se na esteira a cabaça de rapé e o pano vermelho; exibem-se peças de vestuário, pulseiras, colares, meu Deus isto é uma feira, eu estou à venda” (CHIZIANE, 2003, p. 38). O discurso de uma de suas sogras também surpreende, com um tom que desumaniza as esposas no casamento polígamo: “[...] Nós estamos aqui a mais, para aumentar o número de cabeças neste curral, e dar o nosso esforço nas machambas, apanhar com os feitiços das outras, o que é que nós somos?” (CHIZIANE, 2003, p. 53). Porém, não é só na relação poligâmica que a mulher sofre. Sarnau também se torna vítima da monogamia.
No início da sua juventude, apaixona-se por Mwando, que ela diz ser “um rapaz diferente, fala bem, conversa bem e tem cá umas maneiras!...” (CHIZIANE, 2003, p.15). Mwando tem, na verdade, características de um assimilado, estuda para formar-se padre e, como cristão, defende a monogamia. Ambos se apaixonam e vivem um romance, mas Mwando deixa-a para estabelecer um casamento monogâmico com Sumbi, mesmo ao saber que Sarnau encontrava-se grávida. Já na sua maturidade, após ter abandonado seu marido polígamo e ser deixada pela segunda vez por Mwando, Sarnau engravida de outro homem que também não reconhece o filho por se dizer cristão: Sou tão feliz com os meus dois filhinhos. O Joãozinho também não tem pai. O homem soube encher-me a barriga para abandonar-me logo em seguida. O pai afasta-o da sua mesa, não o deixa conviver com os outros irmãos, diz que é por ele ser casado e para mais não fica bem a um cristão dar a entender que tem filhos por aí. Mwando também é cristão, mas abandonou-me com uma criança no ventre. Ser cristão é uma coisa, mas a perversão e o afastamento dos deveres paternais porque se é cristão, é coisa que ainda não entendo bem (CHIZIANE, 2003, p. 137). (Nº 11 | Ano 9 | 2010 | Estudos (1) p. 7)
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CHIZIANE, Paulina. Balada de amor ao vento. 2 ed. Lisboa: Editorial Caminho, 2003.
CHIZIANE, Paulina. Entrevista concedida à revista Maderazinco. Disponível em: http://www.maderazinco.tropical.com.mz/edicIII/entrevista/paulina.htm, acesso em: 01 de set.de 2004.
CHABAL, Patrick. Vozes moçambicanas. Literatura e nacionalidade. 1 ed. Lisboa:Vega, 1994.
LEITE, Ana Mafalda. Paulina Chiziane: romance de costumes, histórias morais. In:Literaturas africanas e formulações pós-coloniais. Lisboa: Colibri, 2003. p.75-87.
MATA, Inocência. Paulina Chiziane: uma coletora de memórias imaginadas. In: Metamorfoses. Lisboa: Edições Cosmos, 2000.
 Nº 11 | Ano 9 | 2010 | Estudos (1) p. 16
OWEN, Hilary. “A língua da serpente: a auto-etnografia no feminino em Balada de amor ao vento de Paulina Chiziane”. In: RIBEIRO, Margarida Calafati e MENEZES, Maria Paula (org.). Moçambique. Das palavras escritas. Porto: Afrontamento, 2008. p.161-175.
RAINHO, Patrícia e SILVA, Solange. “A escrita no feminino e a escrita feminista em Balada de amor ao vento e Niketche, uma história de poligamia”. In: MATA, Inocência e PADILHA, Laura (org.)
A mulher em África. Vozes de uma margem sempre presente. Lisboa: Colibri, 2007
TEDESCO, Maria do Carmo Ferraz. Narrativas da moçambicanidade. Os romances de Paulina Chiziane e Mia Couto e a reconfiguração da identidade nacional. Brasília: Universidade de Brasília, 2008, (tese de doutorado).
  • Érica Alves Rossi
IDEIAS - Romance “balada de amor ao vento”: O feminino e a configuração da moçambicanidade(2)
DENTRE as suas políticas oficiais de modernização de Moçambique, a Frelimo havia condenado a prática da poligamia e do lobolo, impedindo o ingresso de homens “tradicionalistas” no partido.
No entanto, Hilary Owen (2008, p.166-167) destaca que, em 1989, em ocasião do quinto congresso do partido, a Frelimo suspendeu essa sanção, a fim de receber mais apoio da comunidade internacional e também de apoiantes partidários, já que os líderes “tradicionalistas” continuavam a exercer influência importante sobre a população. Tal concessão foi considerada por muitas mulheres como uma traição neopatriarcal aos seus interesses. Importante ressaltar que Paulina vive na sua juventude a luta pela independência, tendo experimentado, também, o sabor da distopia. As reivindicações femininas passam a ter, então, valor de troca, evidenciando que a condição da mulher é fruto não simplesmente da questão colonial, mas sim de uma inferiorização de sua condição em detrimento do homem. Em Balada de amor ao vento, ainda que Mwando sofra sanções das leis de sua tradição e da colonização (Nº 11 | Ano 9 | 2010 | Estudos (1) p. 8) portuguesa, o seu estatuto é sempre superior ao de Sarnau. Ainda que restrita, ele tem a possibilidade de escolha. A ela, resta-lhe a prostituição. O romance demonstra que a colonização das mulheres não foi idêntica à dos homens. Neste sentido, Balada funciona como um “novo começo” estratégico para a consciência política das mulheres moçambicanas, na medida em que expõe um mito marxista anticolonial de falsas origens, segundo o qual as mulheres foram assimiladas pelo masculino por serem alegadamente oprimidas ao nível económico pelo capitalismo nos mesmos termos que os homens, sem qualquer referência a especificidades sexuais (OWEN, 2008, p. 174).
Outro aspecto que revela o tom pós-colonial do romance é a desconstrução de certas crenças que alicerçaram a busca etnográfica das raízes de uma identidade moçambicana perdida. De acordo com Hilary Owen, Chiziane utiliza de forma irónica a nostalgia pastoril e o mito do Gênesis como forma de contra-narrar a nação e o passado nacional em termos simbólicos femininos. A narrativa se inicia com Sarnau mostrando-se saudosa de sua juventude às margens do rio Save, em oposição ao seu presente repugnante na cidade. Estabelece-se a oposição entre o rural e o urbano, entre o Paraíso e a Queda. Resgata, nos moldes nacionalistas, a busca pelo sujeito africano imaculado, livre da influência colonial. Podemos ir além e observar o modo como Mwando é descrito inicialmente, fazendo-se referência a um nativo idealizado, forte, guerreiro.
Sarnau descreve a cerimónia de apresentação de jovens iniciados, aclamados pela comunidade como heróis após terem passado pelas duras provas dos ritos de iniciação.
Um, no entanto, destaca-se aos olhos de Sarnau. É Mwando, mas não apenas aos seus olhos, pois descobre ser ele o rapaz de quem os mais velhos comentavam na noite anterior: “Disseram que ele foi distinto e comportou-se lindamente mesmo nas provas mais difíceis” (CHIZIANE, 2003, p. 13). No entanto, essa distinção não se sustentará ao longo da história, mostrando-se fraco aos olhos da tradição e também segundo os (Nº 11 | Ano 9 | 2010 | Estudos (1) p. 9) moldes do colonizador. Esse herói moçambicano é, na verdade, um assimilado, ou melhor, uma personagem marcada pelo conflito cultural, já que não partilha das crenças africanas, mas tampouco se torna ou é reconhecido como um português. Ainda que seminarista, participa dos rituais de iniciação e vive um romance com Sarnau, e por conta do descobrimento desse relacionamento, acaba sendo expulso do seminário.
Abandona Sarnau grávida, visto que sua família arranjara-lhe um casamento monogâmico e lobolado com Sumbi, mas por esta não cumprir com as exigências de uma esposa nos moldes tradicionais, é rechaçado pelos mais velhos por representar um risco às tradições, reagindo com os argumentos de um assimilado. Afasta-se da família para preservar seu casamento, mas é traído e abandonado pela esposa. Ao envolver-se com a mulher de um sipaio (soldado que defendia a administração colonial) e ser encaminhado à esquadra portuguesa, toda a sua destreza com a língua do colonizador não foi suficiente para livrá-lo da deportação, pelo contrário, soa como escárnio aos ouvidos dos portugueses. Além do mais, seus documentos não lhe garantiram os privilégios de um assimilado, sendo visto como um oportunista. Quando deportado para Angola, aproveita-se dos conhecimentos adquiridos no seminário para livrar-se do trabalho pesado e ganhar dinheiro. Reinventa-se como “Padre Moçambique”, entoando salmos em rituais fúnebres para os muitos companheiros mortos nas plantações:...um irónico e irresponsável “Pai da Nação” que trai os seus putativos companheiros cidadãos, a sua raça e os seus aliados de classe, tão prontamente como fez com Sarnau. Mwando concilia a protecção dos seus companheiros de trabalho e das autoridades coloniais em parte porque finalmente aprendeu a imitar os comportamentos apropriados ao colonialismo (OWEN, 2008, p. 171).
O colonizador, em Balada de amor ao vento, presentifica-se pela figura do assimilado, sem outra presença significante na obra. O foco é o sujeito moçambicano, (Nº 11 | Ano 9 | 2010 | Estudos (1) p. 10) com suas crenças, influências e contradições. Se tomarmos o romance como uma representação alegórica do final dos anos de 1980, Mwando não representaria, também, muitos dos companheiros de luta da autora que traíram seu povo após a Independência em favor de seus interesses pessoais? Ao relatar a viagem para o degredo, a narradora faz menção aos escravos libertos que se comportam cruelmente com seus irmãos escravos. Por meio de uma série de analogias, a autora explora e expande essa relação a outras gerações, como a fazer um momento de reflexão que ultrapassa o episódio da deportação, voltando novamente para o enredo do romance:Os pretos gritavam para outros como se pretos não fossem. O escravo liberto torna-se tirano. O homem alcança as alturas cavalgando nos ombros dos outros. A galinha no poleiro caga despreocupada para as que estão em baixo ignorando que no próximo pôr do sol a situação pode inverter-se. A força de um mede-se pela fraqueza do outro. Um irmão mata outro irmão para demonstrar a sua força ou sobrepor-se-lhe. Em todas as gerações há exemplos de indivíduos que dizimam outros para assegurar o poder. Os capatazes pretos empurravam os pretos, obrigando-os a subir a escadaria para a proa do navio (grifo nosso) (CHIZIANE,2003, p.118-119).
Outro signo que Paulina se apropria para desconstruí-lo é o mito do Génesis. Mwando e Sarnau são comparados ao casal original da Criação. Assim como Eva tornou-se a traidora por mediar a mensagem da serpente, em termos coloniais, a mulher é vista como traidora por se caracterizar como facilitadora da penetração no paraíso nativo através da mediação lingüística e sexual. Hilary Owen (2008, p. 170) destaca que Paulina Chiziane inverte os processos de culpabilização da mulher expondo como a culpa transcultural e a transgressão masculina se fazem projectar sobre as mulheres e, portanto, mostrando que o homem colonizado é tão ou mais susceptível de agir como tradutor traidor. A comparação entre os casais é explicitamente feita quando se descreve (Nº 11 | Ano 9 | 2010 | Estudos (1) p. 11) o namoro entre Mwando e Sarnau. Enquanto ela compreende o início do relacionamento sexual de forma natural, como uma sintonia entre homem e natureza, Mwando entende o como pecado, sendo Sarnau a culpada por lhe tirar a inocência. Interessante observar como a serpente é vista de forma totalmente diferente pelas duas personagens. Quando se põe a reflectir sobre sua iniciação sexual com Mwando, Sarnau remete-se à flora e à fauna como cúmplices do seu amor: “A serpente, junto ao ninho, fecha os olhos, discreta, não vá ela interromper os beijos dos pássaros que se amam, crescem e se multiplicam” (CHIZIANE, 2003, p.19). Diferentemente de Sarnau, tomado por suas crenças católicas, Mwando fica espantado: “Como Adão no Paraíso, a voz da serpente sugeriu-lhe a maçã, que lhe arrancou brutalmente a venda de todos os mistérios. Sim, escutou os lábios de uma mulher pronunciando em sussurros o seu nome, despertando-o do ventre fecundo da inocência” (CHIZIANE, 2003, p. 19) .No entanto, não é Sarnau, mas sim Mwando que se comporta como traidor. É ele quem assimila a cultura do colonizador, traindo tanto Sarnau como os seus companheiros do degredo em Angola ao trabalhar a favor dos interesses dos portugueses. Esses, vendo sua facilidade em lidar com os demais escravos por meio da manipulação da palavra cristã, o tomaram como aliado: Muito depressa os colonos reconheceram nele o homem de que precisavam, o pacificador das revoltas nas roças, com a doutrina do sofrimento da terra e recompensa no céu. Deram-lhe um estatuto diferente e casa independente, tinha amigas em enxame e das boas. Trabalhava pouco nas machambas, ocupando a maior parte do tempo nos rituais da Igreja (CHIZIANE, 2003, p.127). As relações de poder assimétricas também se refletem na obra de Paulina pelo cruzamento da expressão oral e escrita. No sistema colonial, o homem obteve maior contacto com a escritura portuguesa, enquanto as mulheres são vistas como guardiãs (Nº 11 | Ano 9 | 2010 | Estudos (1) p. 12) culturais da oralidade africana primordial. Em Balada de amor ao vento, essa assimetria se reflecte pelo iletramento de Sarnau e pelo domínio por Mwando do sistema de escrita da língua portuguesa. Mais uma situação que reafirma a propensão do homem colonizado para a traição. Não é a mulher, mas o homem, Mwando, que se apropria da língua do colonizador, de sua cultura, e as utiliza para trair o seu povo. A oralidade perpassa o romance por meio de Sarnau, que ao longo do texto relata as tradições, as crendices, os rituais e insere historietas, típicas da tradição oral, dentro da história principal. Owen, porém, contesta esta visão estritamente oral em que aparentemente se encaixa a personagem feminina. De início, ela julga o iletramento de Sarnau como uma invenção nativista, já que ela se põe a escrever sua história. Além disso, o tom irónico utilizado para toda a tradição cultural, reconstruindo-a, transforma-a em uma contranarração do discurso estabelecido, ao mesmo tempo em que responde à ânsia de se reconhecer a identidade africana, mais especificamente a moçambicana, já que suas histórias serão lidas principalmente pelo público estrangeiro, visto que, embora seja o português a língua oficial de Moçambique, uma  pequena porcentagem da população domina seu sistema de escrita. Tal aspecto reflecte uma das características mais marcantes da escrita de Paulina Chiziane: a evocação da tradição como força propulsora para a modernidade do relato, fazendo com que memória e tempo presente, ancestralidade e modernidade confluam em sua narrativa. Em Balada de amor ao vento, a autora agencia a oralidade com uma tipologia de texto tipicamente europeia: o romance.
A sabedoria oral narrada no texto é ironizada pelo discernimento satírico e retrospectivamente experiente de Sarnau sobre as crenças tsonga conservadas nestas declarações orais, à medida que Sarnau contesta os constrangimentos (Nº 11 | Ano 9 | 2010 | Estudos (1) p. 13) tradicionais da obediência feminina, aos quais as mulheres da sua família a sujeitam (OWEN, 2008, p. 173).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CHIZIANE, Paulina. Balada de amor ao vento. 2 ed. Lisboa: Editorial Caminho, 2003.
CHIZIANE, Paulina. Entrevista concedida à revista Maderazinco. Disponível em:http://www.maderazinco.tropical.com.mz/edicIII/entrevista/paulina.htm, acesso em: 01 de set.de 2004.
CHABAL, Patrick. Vozes moçambicanas. Literatura e nacionalidade. 1 ed. Lisboa:Vega, 1994.
LEITE, Ana Mafalda. Paulina Chiziane: romance de costumes, histórias morais. In:Literaturas africanas e formulações pós-coloniais. Lisboa: Colibri, 2003. p.75-87.
MATA, Inocência. Paulina Chiziane: uma coletora de memórias imaginadas. In: Metamorfoses. Lisboa: Edições Cosmos, 2000.
| Nº 11 | Ano 9 | 2010 | Estudos (1) p. 16
OWEN, Hilary. “A língua da serpente: a auto-etnografia no feminino em Balada de amor ao vento de Paulina Chiziane”. In: RIBEIRO, Margarida Calafati e MENEZES, Maria Paula (org.). Moçambique. Das palavras escritas. Porto: Afrontamento, 2008. p.161-175.
RAINHO, Patrícia e SILVA, Solange. “A escrita no feminino e a escrita feminista em Balada de amor ao vento e Niketche, uma história de poligamia”. In: MATA, Inocência e PADILHA, Laura (org.)
A mulher em África. Vozes de uma margem sempre presente. Lisboa: Colibri, 2007.
TEDESCO, Maria do Carmo Ferraz. Narrativas da moçambicanidade. Os romances de Paulina Chiziane e Mia Couto e a reconfiguração da identidade nacional. Brasília: Universidade de Brasília, 2008, (tese de doutorado).
  • Érica Alves Rossi

IDEIAS - Romance “Balada de amor ao vento”: O feminino e a configuração da moçambicanidade*
Há, pelo menos, mais um momento em que a autora ironiza as convenções estabelecidas, dialogando com a cultura do colonizador.
Ao ser abandonada pela segunda vez por Mwando, Sarnau põe-se a procurar-lhe desesperada pela praia e reporta-se às ondas do mar, indagando sobre seu amado, à maneira das cantigas de amigo: “Ó ondas do mar, não viram o meu amor? Verdes palmeiras, aves do céu, peixes, caranguejos, barcos acostados, por onde anda meu amor?” (CHIZIANE, 2003,p. 113). Mas ninguém a escuta, nem a natureza, nem os homens que ali estão, vendo-se novamente sozinha, cumprindo sua sina de mulher: “As águas não me responderam continuando o seu marulhar maravilhoso.(...) Os homens continuavam absortos, ninguém me via, ninguém me ligava e eu sofria sozinha. O sol da manhã foi mais amigo, espalhando a minha imagem nas águas em rebuliço, mostrando bem transparente a desgraça que era o meu fardo” (CHIZIANE, 2003, p.114).
Esse fardo, Sarnau compartilha com as outras mulheres, explicitando tal cumplicidade em vários momentos da obra. O mais significativo, porém, é em relação a Phati, a quinta esposa do seu marido Nguila Zucula, a qual trouxe muito sofrimento a Sarnau. É a sua existência que a personagem responsabiliza o distanciamento do marido e é também por sua denúncia que nossa protagonista é obrigada a fugir com Mwando para não ser assassinada por Nguila. Ambas se odeiam por disputar o amor do mesmo homem no casamento polígamo. No entanto, Sarnau vê-se obrigada a dar à filha seu nome, já que a menina estava entre a vida e a morte e sua doença era atribuída ao sofrimento da alma da rival. Nomear a filha com o nome da rival é irmanar-se com o sofrimento de Phati, é simbolizar que ambas são vítimas de um mal maior. Neste (Nº 11 | Ano 9 | 2010 Estudos (1) p. 14) sentido, Balada de amor ao vento é uma obra feminista aos moldes africanos, ela simboliza não uma bandeira hasteada contra o mundo masculino, mas instrumentaliza a mulher a compreender a sua posição no cenário social a que pertence, recrutando-a a uma luta que busca uma relação menos desigual entre os sexos. As mulheres dos seus livros, como a própria Paulina afirma, lutam por “um espaço de liberdade dentro de uma relação de interdependência e complementaridade com o mundo masculino” (GOMES, 2001, p.7).
Referindo-se à Balada de amor ao vento, Hilary Owen (2008, p.165) afirma que “o romance provocou certo grau de escândalo porque quebrou o tabu cultural através da representação de uma mulher que expressa o desejo sexual”. Em um de seus pronunciamentos, alguns anos após sua publicação, Paulina Chiziane exprime certa ansiedade em ouvir críticas no que diz respeito à qualidade estética de sua obra: A reacção ao meu livro? Bom, é o primeiro livro feminista que sai em Moçambique.
Até agora ainda não encontrei muitas pessoas que me falassem da qualidade em termos estéticos, a esse nível superior.(...) Realmente, em termos de tema, eu penso que consegui atingir o objectivo. Agora, em termos estéticos... (CHIZIANE, 1994,p.299-300).
Anos depois, com a expansão ainda incipiente, porém significativa, dos estudos das obras literárias africanas de expressão portuguesa, a qualidade estética do livro parece ser inquestionável. O tom lírico que perpassa o romance, a simbologia que constrói, ao mesmo tempo em que desconstrói signos que sustentaram a estética anterior, além de inúmeros outros aspectos incapazes de serem abordados neste breve trabalho faz de Paulina Chiziane uma das maiores escritoras africanas da atualidade.
Reduzir o romance a um mero passeio pela vida no feminino é desconsiderar a força da enunciação que tanto enriquece a linguagem literária. (Nº 11 | Ano 9 | 2010 | Estudos (1) p. 15).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CHIZIANE, Paulina. Balada de amor ao vento. 2 ed. Lisboa: Editorial Caminho, 2003.
CHIZIANE, Paulina. Entrevista concedida à revista Maderazinco. Disponível em: http://www.maderazinco.tropical.com.mz/edicIII/entrevista/paulina.htm, acesso em: 01 de set.de 2004.
CHABAL, Patrick. Vozes moçambicanas. Literatura e nacionalidade. 1 ed. Lisboa:Vega, 1994.
LEITE, Ana Mafalda. Paulina Chiziane: romance de costumes, histórias morais. In:Literaturas africanas e formulações pós-coloniais. Lisboa: Colibri, 2003. p.75-87.
MATA, Inocência. Paulina Chiziane: uma coletora de memórias imaginadas. In: Metamorfoses. Lisboa: Edições Cosmos, 2000.
| Nº 11 | Ano 9 | 2010 | Estudos (1) p. 16
OWEN, Hilary. “A língua da serpente: a auto-etnografia no feminino em Balada de amor ao vento de Paulina Chiziane”. In: RIBEIRO, Margarida Calafati e MENEZES, Maria Paula (org.). Moçambique. Das palavras escritas. Porto: Afrontamento, 2008. p.161-175.
RAINHO, Patrícia e SILVA, Solange. “A escrita no feminino e a escrita feminista em Balada de amor ao vento e Niketche, uma história de poligamia”. In: MATA, Inocência e PADILHA, Laura (org.).
A mulher em África. Vozes de uma margem sempre presente. Lisboa: Colibri, 2007.TEDESCO, Maria do Carmo Ferraz. Narrativas da moçambicanidade. Os romances de Paulina Chiziane e Mia Couto e a reconfiguração da identidade nacional. Brasília: Universidade de Brasília, 2008, (tese de doutorado).
  • Érica Alves Rossi

IDEIAS - A Tradição Oral em Niketche: Movimentos e ritmos vitais na dança do amor*

O meu amor. Tem um jeito manso que é só seu. De me fazer rodeiosDe me beijar os seios. Me beijar o ventre. E me deixar em brasa. Desfruta do meu corpo. Como se o meu corpo fosse a sua casa. - Chico Buarque
QUANDO nos propomos a dar um grande mergulho nas literaturas africanas de língua portuguesa nos deparamos quase sempre com tesouros da escrita literária, ora com um autor, ora com outro. Uma escrita que tende a ser parecida com a brasileira por sua língua comum e até mesmo por ser forjada também nos alicerces de uma reconstrução cultural pautada sob o signo do pós-independência. Porém, mesmo com essas características comuns, a escrita africana de língua portuguesa acaba por mostrar realidades bem diferentes das que vivemos e conhecemos por aqui. Paulina Chiziane, com seu romance Niketche, uma história de poligamia representa um desses belos exemplos de escrita, pois através de elementos culturais específicos apresenta a riqueza encontrada em Moçambique e nos leva por caminhos ainda pouco explorados e percorridos.
O romance que chega para desmistificar as relações sociais tão impregnadas nas sociedades colonizadas por Portugal, como Moçambique. País dividido entre práticas tradicionais e práticas herdadas da colónia portuguesa. Rico em descrições, o romance nos traz sensações quase reais, onde os cheiros, as cores, os ambientes e os sentimentos das personagens são relatados de forma concreta e apresentados sem exageros, chegando a uma formula perfeita que leva o leitor a fundo no perfil complexo das personagens. Por isso a leitura oferece uma viagem através da voz de uma mulher ao seio do íntimo feminino, numa sociedade onde o grande portador da voz é sempre o homem. Em Niketche o universo das mulheres ganha cores mais específicas, deixando de ser um mero elemento figurativo, dando lugar ao olhar diferenciado feminino.
Niketche, uma história de poligamia tem como narradora e protagonista Rami, uma mulher que vive sob o signo da infidelidade de seu marido. Uma moçambicana que pensa e age sobre a condição de mulher negra, á margem da sociedade, da família e do casamento. Rami busca seu verdadeiro lugar, refletindo sobre o seu próprio eu, buscando o melhor caminho para lidar com a colisão dos opostos mulher/homem, esposa/amante, monogamia/poligamia, tradição/ruptura, numa dança da existência, na solidão do seu íntimo, cometendo erros e acertos na busca incessante da sua própria identidade. Rami é o reflexo da verdade, do amor, do anti-amor, da vitória, da conquista, da vingança, da incerteza, do paradoxo, do medo, da submissão e da ruptura.
Já Tony, marido de Rami representa a unidade nacional, o homem, o patriarca, a força, a violência e o controle. O suposto protetor da tradição colonial.
Julieta, Luísa, Saly, Mauá, Eva, Gaby e Saluá, são mulheres sem rosto, com pouca definição, fragmentos de uma mesma mulher. Amantes de Tony e no decorrer do romance aliadas de Rami. Metade do norte, metade do sul de Moçambique. Mulheres em situação similar, mas com comportamentos culturais distintos.
Vito é o amante dividido. Luísa o empresta a Rami para acabar com as suas carências de mulher. Vito é apaixonado por Luísa e vê em Rami a esposa perfeita, porém apagada pela falta de afeto e atenção. Vito representa uma das grandes rupturas vivida por Rami, o adultério.
Levy, o irmão de Tony, herdeiro de uma noite com Rami, depois da suposta morte de Tony. De acordo com a tradição a esposa depois da morte do marido é oferecida ao irmão do esposo. Como prática tradicional de finalização do luto. Levy é a chave de vingança que Rami utiliza para mostrar a Tony o próprio gosto da obediência imposta pela tradição.
Com o passar dos tempos a literatura se modificou, se modernizou obedecendo aos conceitos e transformações arraigadas pelos processos ocorridos nos estilos, gêneros e maneiras de se ver a literatura como um todo. A literatura moderna possui elementos específicos dela, como já vimos através de grandes autores, como Benjamin, por exemplo. Uma dessas transformações foi o papel do narrador dentro das narrativas; com o passar do tempo esse narrador foi se calando, dando lugar a outros elementos inerentes a obra. Porém hoje há um ressurgimento desse narrador participante. Aquele que pega a mão do leitor e o leva para os caminhos da estória, indicando o melhor trajeto a ser seguido. Paulina Chiziane através de Rami, a narradora da obra, estabelece um reencontro ao contar de estórias. A voz de Rami é o pano de fundo de toda a trama e assim no final do romance, o leitor tem a deliciosa sensação de voltar no tempo, onde a experiência possuía grande importância, onde o ouvir era mais valioso do que o falar.
Paulina Chiziane revisita essa atmosfera tradicional do contar de estórias, mesmo que através de denúncias sociais, seu leitor não deixa de experimentar essa prática deixada de lado com o tempo. Por ser africana e fazer parte de uma sociedade onde ainda a experiência tem seu valor Paulina Chiziane coloca em foco essa tradição, passar conhecimento através do tempo, onde o mais velho tem sempre uma boa estória para contar:
“Eu sou aquela que tem o um espelho como companhia no quarto frio. Que sonha o que não há. Que tenta segurar o tempo e o vento. Só tenho o passado para sorrir e o presente para chorar. Não sirvo pra nada . as pessoas olham pra mim como uma mulher falhada. Que futuro espero eu? O marido torna-se turista dentro da própria casa. As mudanças correm rápidas neste lar. As mulheres aumentam. Os filhos nascem (...)”(CHIZIANE, 2004. p. 65)
Em Niketche o espaço é definido por Moçambique, norte e sul do país delimitam acontecimentos, realidades, costumes e até mesmo elementos físicos das personagens. O norte e sul estabelecem a fronteira entre a tradição e ruptura de costumes locais tradicionais. De um o catolicismo colonial, do outro, elementos islâmicos entrelaçados com cultos ancestrais. E assim até o vestuário, a alimentação, o comportamento, a posição dentro do social diante do local, se modificam.
Como percebemos, o gênero é uma questão fortemente discutida no romance, pois Rami, a protagonista não aceita sua vida, refletindo, indagando sempre sobre sua condição mulher. Questões como o casamento, a divisão do trabalho, o espaço da mulher dentro da sociedade, o poder masculino sob a fragilidade feminina são intensamente debatidos pela voz de Rami e pelas vozes das outras esposas de Tony. Nesse sentido, podemos até dizer que a própria Paulina Chiziane traz essa discussão no seu romance com o intuito de estabelecer uma reflexão da sua própria trajetória dentro e fora do circulo literário, antes disso do seu próprio lugar dentro da sociedade moçambicana, que em grande parte é de poderio patriarcal.
Moçambique, como o Brasil, é um país que abarca várias religiões num sistema constante de transformações. Diante disso encontramos lá o catolicismo, o islamismo, o protestantismo e os cultos ancestrais tradicionais, variando a intensidade de acordo com a região. Esse tipo de relação com o religioso se dá pelo fato da grande mistura cultural encontrada em Moçambique, mudanças ocorridas através da história, de processos sociais e de diálogos entre manifestações de diversas crenças.
Moçambique foi colônia de Portugal até 1975, sua estrutura está intrinsecamente ligada aos costumes portugueses. Após a independência a nação moçambicana começou um processo de reintegração e de busca de uma identidade nacional, mesmo sendo um processo que pode ou não gerar um resultado satisfatório. A busca existe, porém as heranças coloniais estão em toda parte, começando pela própria língua falada em território nacional: o português.
Todo país que passa por um processo de independência tem na sua base a resistência. Num confronto entre a tradição e a modernidade, numa luta por liberdade, pela busca de uma identidade. Moçambique, como outros países africanos que foram colônia de Portugal, resistiu e tentou proteger a todo custo uma identidade não modificada por inteira pela própria colônia. Porém mudanças nesse tipo de domínio são inevitáveis. Contudo pela força do desejo de liberdade, sociedades como a moçambicana conseguiram manter vivas práticas e elementos originais que nem o tempo nem o domínio do outro conseguiram apagar. Num ato de pura resistência e preocupação com o futuro Moçambique é um território onde a resistência começa nos limites onde a voz pode chegar.
O romance é uma contação de estória, com movimentos retilíneos, numa composição bem tradicional com início, meio e fim. Como as antigas estórias já canonizadas pela tradição, Niketche oferece aos seus leitores o doce navegar que a literatura pode oferecer. Movimentos vêm e vão com o passar do tempo, transformações são inevitáveis com a chegada da modernidade. Contudo, o mergulho que se dá ao mundo de Rami através do romance de Paulina Chiziane, garante o estar novamente nas belas margens do oral poetizado.
Uma característica comum na literatura africana de língua portuguesa é trazer o entre lugar, o falar por uma nova perspectiva. Paulina Chiziane é um belo exemplo dessa escrita que possui o olhar de quem está na terceira margem. O definir o que é permanecer o tempo todo numa fronteira, onde o discurso nunca é estático, imutável. E o rio representa em Niketche esse entre lugar, pois as águas nunca param de rolar.
“A minha vida é um rio morto. No meu rio as águas pararam no tempo e aguardam que o destino traga a força do vento. No meu rio, os antepassados não dançam batuques nas noites de lua. Sou um rio sem alma, não sei se a perdi e nem sei se alguma vez tive uma. Sou um ser perdido encerrado na solidão mortal.”(CHIZIANE, 2004. p. 18)
“Sou um rio. Os rios contornam todos os obstáculos. Quero libertar a raiva de todos os anos de silêncio. Quero explodir com o vento e trazer de volta o fogo para o meu leito, hoje quero existir.” (CHIZIANE, 2004. p. 19)
A dança no romance vem para mostrar a sensualidade, o erotismo ocultado por tanto tempo num discurso feminino. A dança acaba sendo uma forma de metáfora da existência de Rami, que busca incansavelmente o prazer de estar viva. Niketche, a dança do amor é o mecanismo responsável pela ligação entre passado, presente e futuro. Onde o ritmo e os movimentos misturam o tempo, numa grande representação do inteiro, do todo, do reencontro com o passado, da análise do presente e da projeção do futuro. Niketche, a dança do amor representa o “re-estar” em lugares onde somente a memória pode nos levar.
“Niketche, a dança do sol e da lua, dança do vento e da chuva, dança da criação. Uma dança que mexe, que aquece. Que imobiliza o corpo e faz a alma voar. As raparigas aparecem de tangas e missangas. Movem o corpo com arte saudando o despertar de todas as primaveras. Ao primeiro toque do tambor, cada um sorri, celebrando o mistério da vida ao sabor do niketche. Os velhos recordam o amor que passou, a paixão que se viveu e se perdeu. As mulheres desamadas reencontram no espaço o príncipe encantado com quem cavalgam de mãos dadas no dorso da lua. Nos jovens, desperta a urgência de amar, porque o niketche é sensualidade perfeita, rainha de toda a sensualidade. Quando a dança termina, podem ouvir-se entre os assistentes suspiros de quem desperta de um sonho bom.”(CHIZIANE, 2004. p. 160)
Quando se analisa um romance como Niketche, uma história de poligamia, onde encontramos personagens tão vivos, cenários tão bem elaborados e uma estória que prende por sua legitimidade, a análise se torna um tanto panorâmica. O pretendido na composição desse texto sobre a obra, foi justamente indicar alguns caminhos que se pode seguir ao mergulhar nesse grande mundo que as literaturas africanas de língua portuguesa podem oferecer. De fato é um território simbólico da vida, pois a cada página lida se tem a sensação de estar constantemente num movimento vital, como o fluir de uma boa respiração. Niketche convida o seu leitor para degustar esse território simbólico, onde as sensações não temem em chegar.
Rami conta a sua estória de vida e pelas margens da poligamia abre o caminho para discussões acerca daquilo que ficou impregnado com o passar dos tempos: estruturas, crenças costumes, alicerces sociais. Mas que ao lado de muita resistência e coragem podem alcançar novas e repensadas condições. E para finalizar uma breve fala de Rami, que decifra o grande prazer em adentrar nesse universo de Niketche, uma história de poligamia:
Esta imagem é a minha certeza, o meu subconsciente, resgatando ditados e saberes mais escondidos na memória. (CHIZIANE, 2004. p. 172)
Referências:
BRANDÃO, Luis Alberto. Espaços Literários e suas expansões. Aletria: revista de estudos de literatura. V. 15 jan. jun- 2007. p. 207-219.
CHIZIANE, Paulina. Niketche, uma história de poligamia. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
Ser escritora é uma ousadia” Entrevista ao Maderazindo. Revista Literária Moçambicana. ( http://www.maderazindo.tropical.co.mz)
FANON, F. Peau noire, masques blancs. Paris: Èditions du Seuil, 1975.
FRY, Peter. Moçambique, ensaios. Rio de Janeiro. Editora UFRJ, 2001.
HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-modernidade. Rio de Janeiro: DPA, 2004.
PADILHA, Laura Cavalcante. Entre voz e letra: o lugar da ancestralidade na ficção angolana do século XX. Niterói: EdUFF/Pallas, 2007.
SALGUEIRO, Maria Aparecida Andrade. Escritoras Negras Contemporâneas: estudo de narrativas: Estados Unidos e Brasil. Rio de Janeiro: Caetés, 2004.
VALENTIM, Jorge. Paulina Chiziane: Uma contadora de Histórias no ritmo da (Contra-) Dança. Revista do Núcleo de Estudos de Literaturas Portuguesa e Africanas da UFF, Vol. 1, n° 1, Agosto de 2008.
ZUMTHOR, Paul. A Letra e a Voz. A literatura Medieval. São Paulo: Cia. Das Letras, 1993.Introdução à Poesia Oral. São Paulo: Hucitec, 1997.
Tradição e Esquecimento. São Paulo: Hucitec
Sites:
http://vagalume.uol.com.br/chico-buarque Acessado em 25 de Outubro de 2008.
* www.africaeafricanidades.com

  • André Sampaio
Ideias - O sentido comunitário na narrativa africana - O caso de Moçambique* (Concl.)
Em «O regresso do morto» (1989) de Suleiman Cassamo, o autor explora, através da história de Moisés e de sua mãe, os dramas vividos pelas famílias do sul de Moçambique que viam os seus filhos partirem para as minas da África do Sul, de onde regressavam, invariavelmente doentes, ou simplesmente, não regressavam, muitos deles soterrados debaixo de alguma mina que, entretanto, desabara. E aqui, com o regresso inesperado de Moisés, entretanto dado como morto, assistimos com a restituição da verdade, a possibilidade da reposição da ordem familiar. 
À luz deste exemplos, podemos, pois, inferir que a contraposição entre um sentido individualista da existência, em que o indivíduo é já de per si totalidade, e um sentido colectivo, em que esse mesmo indivíduo só adquire significado inserido num âmbito comunitário ou familiar, institui-se como uma dualidade que define dois territórios culturais que, apesar de não totalmente excludentes nem estanques, exprimem mundividências particulares que a arte, em geral, e a literatura, em especial, se têm encarregado de consagrar.
Sem cair necessariamente numa inflexível categorização binária, não podemos deixar de considerar a coexistência destas duas ordens, destas duas visões do mundo que apesar de muitas vezes se processar sob o signo do conflito e de uma incompatibilidade estrutural, permitem cruzamentos e efeitos simbióticos estimulantes.
Referimo-nos precisamente à ordem dominada pela modernidade, por um lado, e àquela que se subordina ao sentido comunitário arreigado à tradição. A incompatibilidade entre estas duas ordens decorre, entre outros, do facto de a modernidade ter instituído o indivíduo como projecto de si próprio.
E é sob signo das irresoluções decorrentes dessas duas ordens que vemos desenrolar-se a trama de Niketche (2002), romance com o qual Paulina Chiziane procura discutir não só o tema da poligamia, mas também as práticas e rituais instituídos pela tradição.  Duas vontades parecem estar aqui em jogo: uma vontade telúrica que determina o sentido comunitário e uma vontade de escolha ou do livre arbítrio que coloca os seres entre a liberdade e a responsabilidade individual, apanágio, afinal, da modernidade. E é para essa percepção que Rami, a protagonista, parece despertar ao ver-se inserida na teia de uma família alargada, já sob os ditames da tradição, enquanto valor a preservar, mas do que ela tem de perverso e de insustentável.
Entre o sentido comunitário e o sentido individual
As narrativas acima referidas permitem-nos afirmar que, na moderna narrativa africana, sem estarem definitivamente abandonadas quer a necessidade de uma lição moral, quer  a perseguição de uma ideia de totalidade, o que assistimos é uma transfiguração desses mecanismos decorrentes tanto das mutações da própria sociedade sob o influxo da modernidade, como da adopção de novos dispositivos estético-literários e de opções temáticas, em certa medida, sintonizados com uma ordem cultural ainda dominante.
Discutindo a questão do cânone e dos imperativos formais da criação literária, Earl Miner (1995) aponta expressamente a ortodoxia hegemónica dos padrões culturais do Ocidente que acabam, inevitavelmente, por ditar ou concorrer para a configuração dos modelos de escrita de outras latitudes.
Entre outros aspectos, podemos constatar como se evoluiu da narrativa de transmissão oral à narrativa escrita, com todas as perdas e ganhos que aí se verificam, mas sobretudo com a consolidação de determinadas características estruturantes. São os casos, por exemplo, dos modos de narrar, das técnicas, dos procedimentos e das normas que delimitam um género determinado, seja ele o conto seja ele o romance.
Um aspecto a ressaltar nos textos dos autores moçambicanos, pelo menos os que aqui foram objecto de análise, é a oscilação entre uma ordem colectiva, reforçada pelos próprios acontecimentos e a vontade individual das personagens. Sintomaticamente, ou não, quando esta ordem individual se impõe invariavelmente ela representa transgressão. Transgressão de um sentido existencial que comunga valores, memórias, afectos, costumes, normas, sentimentos. Tal é o sentido comunitário, tal é o sentido da família enquanto comunidade de sangue. Assim o parecem indiciar as narrativas de Aldino Muianga, de Ungulani Ba Ka Khosa ou Borges Coelho.
Por outro lado, mesmo que essa transgressão não seja tão efectiva, ela indicia mais do que a tentativa de afirmação da vontade individual, a questionação do que existe de mais aniquilador no sentido comunitário e familiar da existência. Tais são os casos de Saíde o Lata de Água de Mia Couto, como de Rami, em Paulina Chiziane.
Conclusão
Dificilmente se pode contornar, em relação às artes africanas, em geral, e à literatura, em particular o impacto e a apelo inspirador dos contextos em que ela surge e que se tornam objecto de reinvenção. Tal facto poderá explicar, em parte, o papel interventivo e messiânico de que se armam os escritores não só para celebrar o mundo que recriam, mas também para o questionar, para o tentar corrigir, mas nunca para o recusar, na sua totalidade.
Daí que o sentido comunitário que atravessa grande parte da narrativa moçambicana – afinal, a vocação da narrativa é a representação de totalidades – traduz uma espécie de nostalgia de uma herança existencial e patrimonial comum, uma espécie de paraíso perdido o que, em certo sentido, transforma em aspiração a reivindicação do papel da família como da própria comunidade em que as personagens evoluem.
No entanto, quer o pendor crítico quer as tonalizantes moralizantes que caracterizam o discurso literário desses autores inscreve-se no confronto desencadeado pelas transformações civilizacionais e culturais decorrentes da modernidade e do modo como ela formatou sensibilidades, racionalidades e padrões de vida. E é, pois, em contraposição às sociedades individualistas do mundo contemporâneo que, utopica e idilicamente, a sociedade comunitária, real ou imaginária, se institui como pano de fundo da narrativa moçambicana.
Mesmo quando nos confrontamos com a singularização dos seres e da existência na narrativa, essa mesma individualização parece corresponder mais à fragmentação dos valores, das percepções, das instituições e da sociedade, em geral, do que propriamente a legitimação e consagração de qualquer perspectiva mais subjectiva que caracteriza o mundo e a narrativa ocidental.
Não é, pois, por acaso que a família, afinal tão antiga como a própria humanidade, enquanto microcosmos social e comunitário, está tão presente em qualquer uma das narrativas que escolhemos para esta reflexão. Se em «O totem» de Aldino Muianga se reconhece um incontornável sentido moralizador da narrativa, com indisfarçáveis apelos à salvaguarda dos valores, das tradições e dos costumes, em «Aconteceu em Saua-Saua» de Lília Momplé há uma denúncia e uma condenação a uma ordem política e social insustentável gerada, por exemplo, pela dominação colonial.
Por sua vez, tanto nos contos de Ungulani e de Mia Couto, respectivamente «O exorcismo» e «Saíde o Lata de Água», como no romance Niketche de Paulina Chiziane, o que prevalece é a constatação da degradação de um conjunto de valores que põem em causa a dignidade do ser humano como um todo, mas sempre indissociável de uma dimensão social, de uma dimensão colectiva.
Condição que tem necessariamente a ver com a visão, ou as visões do do mundo que subjazem esta arte primordial de retenção do fluxo de existência nas suas inumeráveis realizações. Se a narrativa moderna traduz superiormente a fragmentação e a solidão fundamental do sujeito produto da modernidade, na arte de contar dos africanos, mesmo debaixo da influência dessa mesma modernidade, subsistem motivações que resgatam uma envolvente e plurívoca ideia de totalidade. Isto é, o ser humano representado mesmo na sua dimensão mais íntima e subjectiva surge sempre imerso no poderoso manto da totalidade social.
Por conseguinte, quer por força dos apelos das vivências e da(s) oralidade(s) de que se tece o quotidiano de onde surge, quer pelo ainda marcante sentido comunitário de existência que evoca, a narrativa africana é uma alegoria da forma como a literatura constrói a totalidade seja ela nostálgica ou utópica, seja ela o devir de todas as imprevisibilidades e de todas as provações.
E é aí onde a narrativa de vocação africana afirma a sua peculiaridade. Ora recriando e repensando modos de existir de um espaço vital onde o ético, o político, o cultural, o religioso e o social se dissolvem num amálgama em constante transformação, ora reiventando a própria tradição de narrar adicionando-lhe elementos únicos e, por conseguinte, emblemáticos.
Referências bibliográficas
CASSAMO, Suleiman (1989). «O Regresso do Morto» in O Regresso do Morto. Maputo: AEMO.
CHIZIANE, Paulina (2002). Niketche. Maputo: Ndjira.
COELHO, J. P. Borges (2003). As Duas Sombras do Rio. Maputo: Ndjira.
COUTO, Mia (1987). «Saíde, o Lata de Água» in Vozes Anoitecidas, 4ª ed. Lisboa: Caminho.
COETZEE, Pieter H. (2004). «Particularity in morality and its relation to community» in P H Coetzee and APJ Roux, Philosophy from Africa, 2nd ed. Oxford: University Press.
FAUQUIÉ, Rafael (1993). «Fragmentária voz poética» in http//www.letralia.com/101/ensayo01.htmGOTLIB, Nádia Battella (2003). Teoria do Conto, 10 ed. São Paulo: Editora Ática.
GYEKE, Kwame (2004). «Person and community in African thought» in P H Coetzee and APJ Roux, Philosophy from Africa, 2nd ed. Oxford: University Press.
LEVINAS, Emmanuel (1988). Totalidade e Infinito. Lisboa: Edições 70.
KHOSA, Ungulani Ba Ka (1990). «O exorcismo» in Orgia dos Loucos, 2ª ed. Maputo: Imprensa Universitária.
MINER, Earl (1995). «Estudos Comparados Interculturais» in Marc Angenot (dir.), Teoria Literária. Lisboa: Dom Quixote.
MOMPLÉ, Lília (2007). «Aconteceu em Saua Saua» in Ninguém matou Suhura, 4ª ed. Maputo: Edição da Autora.
MUIANGA, Aldino (2003). «O totem» in O Domador de Burros e Outros Contos. Maputo: Ndjira.
WIREDU, Kwasi (2004). «The moral foundations of an African culture» in P H Coetzee and APJ Roux, Philosophy from Africa, 2nd ed. Oxford: University Press.

  • Francisco Noa
IDEIAS - Da criação e da crítica literária: A cultura como valor apelativo e estruturante *(1)
Quando, há algum tempo atrás, discutia com alguns estudantes do curso de licenciatura em literatura moçambicana os temas que iriam desenvolver para a culminação dos seus estudos, apercebi-me, uma vez mais, que todos eles, sem excepção, privilegiavam uma perspectiva onde explicitamente elementos de ordem cultural e social tinham especial relevância.
Títulos como: “A representação de espaços sociais, culturais e simbólicos do elemento feminino”, “O texto narrativo no manual escolar: leitura e transmissão de referências sócio-culturais”, “A representação do espaço suburbano no conto «O Domador de Burros», como Projecção da Moçambicanidade”, “O Quotidiano das Personagens Femininas na obra Niketche de Paulina Chiziane”, “O Papel da personagem Taba Mayeba na desmistificação dos mitos e dos ritos em Aldino Muianga”, “O Fantástico como uma Realidade Social em o Apóstolo da Desgraça de Nelson Saúte” e muitos outros títulos que não é possível aqui enumerar, são bem reveladores de como a preocupação com o elemento cultural é tão marcada nas opções de abordagem universitária da literatura moçambicana.
Aliás, um olhar panorâmico sobre a pluralidade de reflexões e publicações que têm vindo à luz, nos nossos países e não só, elucidar-nos-ia, de imediato, sobre a prevalência desses mesmos aspectos nos exercícios interpretativos que têm como objecto as literaturas africanas em língua portuguesa.
As explicações para tal fenómeno podem ser encontradas, presumo, na encruzilhada de variados factores como sejam:
Primeiro, porque as nossas literaturas, não escapando àquele que parece ser o factor transversal da arte em África, vivem de uma profunda interacção e contaminação do meio em que elas emergem estabelecendo com os ambientes circundantes um diálogo intenso, estruturante e permanente;
segundo, porque tratando-se de literaturas surgidas no contexto colonial, portanto, em situação de dominação, há mais ou menos cem anos, acabaram por incorporar, como motivação decisiva, a preocupação com a delimitação de um território estético próprio que, naturalmente, impunha o recurso a estratégias de afirmação identitária que questionavam e se distanciavam da ordem cultural e política dominante;
Terceiro, porque a própria tradição dos estudos literários que têm como objecto a literatura africana conduziu à consagração de um modelo crítico a que dificilmente conseguem escapar mesmo as consciências mais afeitas a uma perspectiva mais formalista ou estruturalista. Por outro lado, na esteira da abertura pós-estruturalista de inspiração derridiana, irão surgir as controversas, mas importantes, formulações teóricas conhecidas como «estudos culturais» cujos fundamentos e práticas têm tido destaque crescente no comentário crítico contemporâneo.
Quarto, o sempriterno desconcerto, quando não deslumbramento, que estas literaturas suscitam enquanto recriação ou revelação de realidades que encerram dentro de si o que há de mais surpreendente, imprevisível, contraditório, inaudito, inapreensível, dramático e risível da condição humana. No caso moçambicano, muito do sucesso, sobretudo no exterior, de escritores como Mia Couto ou Paulina Chiziane, será certamente devedor dos índices de estranhamento, quando não de novidade (agora, cada vez menos, obviamente)  que a escrita de ambos suscita.
Quinto, a aguda, indisfarçável e crescente crise de valores a que se assiste nas nossas sociedades, a quase todos os níveis  e que, derivada de vários  e complexos circunstancialismos, concorre para uma desertificação espiritual, sobretudo entre os jovens, o que conduz à mobilização dos escritores no sentido de fazerem da literatura um exercício de pedagogia ética e cívica, numa deliberada busca de uma ordem e de um sentido existencial que acaba por estar inevitavelmente ancorado numa ideia de cultura que recupera e projecta valores de referência e de estabilidade, em que a evocação das tradições joga um papel importante.
Vistos quer isoladamente quer no seu conjunto, pensamos serem estes alguns dos factores que concorrem para uma determinada arquitectura criativa e crítica no espaço literário de língua portuguesa, sobretudo quando África, Moçambique, em particular, enquanto vivência e enquanto representação, surge como tema, motivo e contexto.
Atento a toda esta problemática, muitas vezes demasiado empolada, Michael Chapman (2003), da Universidade de Natal, na África do Sul, alerta-nos para o facto de que o predomínio das práticas culturais na discussão sobre a literatura e  sobre a criação artística, em geral, não deve ser visto como uma exclusividade africana. E esta afirmação tem pertinência irrecusável se considerarmos, tal como Terry Eagleton (2003: 17) que a cultura, afinal, “corporifica nossa humanidade comum”.
Na verdade, olhando, para o percurso de outras literaturas, como sejam as latino-americanas e mesmo as do Ocidente, não é difícil reconhecer, por exemplo, como essa questão aflora, em diferentes momentos, com contornos muito salientes, quando não, nalguns casos, com carácter obsessivo. Lembremo-nos do romantismo, na sua vertente mais nacionalista e revivalista ou na sua exploração do popular e do exótico, do modernismo brasileiro, e do pós-modernismo, com os post-colonial studies.
Contudo, pelo simples facto de as literaturas africanas terem surgido em situação de domínio colonial e na tentativa de procurarem afirmar um universo estético próprio e que incorpora e celebra tudo o que o Ocidente ignorou ou subestimou, acabaram essas mesmas literaturas por fazerem da escrita não só um acto cultural, mas também político.
Facto bem identificado por alguém como Chinua Achebe, no já distante ano de 1965, no célebre ensaio “The Novelist as a Teacher”, em que nos apresenta o escritor africano imbuído de um didactismo messiânico, quer pela função desocultadora dos seus textos quer por poder demonstrar que os africanos não são o lado escuro e obscuro da psique humana.
Analisar em que medida a estetização do elemento cultural se institui como valor dominante nos processos de criação e de crítica literária no universo das literaturas africanas é, pois, o objectivo desta reflexão. Isto é, discutir como essas mesmas literaturas particularizam a “nossa humanidade comum” a que se refere Eagleton (2003: 29) e que contribuem, segundo o mesmo autor, para a “colorida tapeçaria da experiência humana”.
A criação literária e a incontornabilidade da cultura
Segundo T.S.Eliot (1997: 23), o que acontece aquando da criação de uma obra de arte é algo que acontece simultaneamente a todas as obras de arte que a precederam. Isto é, é, aqui, uma vez evidenciada a concordância entre o velho e o novo, ou se quisermos, entre a tradição e a inovação. Portanto, o processo de criação é sempre uma reinvenção de estruturas, temas, perspectivas, linguagens e que garantem sempre a legitimidade e legibilidade de uma obra.
As  literaturas africanas têm, nesta conformidade, conquistado e alargado os seus universos de recepção integrando, por um lado, toda uma tradição estética assimilada ou importada e, por outro, inscrevendo elementos de ordem linguística, filosófica, estética, cultural e vivencial decorrentes da pertença dos escritores a um espaço físico e simbólico determinado. E é, precisamente, a necessidade, muitas vezes compulsiva, de repensar, valorizar e consagrar esse mesmo espaço que a sua representação se torna causa e efeito do acto de criação literária.
Antes de avançarmos, importa sublinhar que dificilmente nos poderemos cingir a uma definição estável e cabal de cultura, termo oscilando entre a maleabilidade  e a rigidez conceptual, entre a amplitude e a restrição de sentido, e que, cada vez que o interpelamos e escavamos, nos oferece mais inquietações e indefinições que respostas e certezas.
A este propósito, Margaret Archer, citada por Eagleton (2003), é peremptória ao concluir que o conceito de cultura exibiu o mais fraco desenvolvimento analítico de entre todos os conceitos-chaves das ciências sociais e desempenhou o papel mais descontroladamente vacilante na teoria sociológica.
Neste sentido, ao falarmos das dominantes culturais que presidem tanto a criação literária como a sua exegese, temos em conta não só as particularidades que o termo cultura sugere, mas também a sua amplitude conceptual que acaba por fazer caber, entre outros, o histórico, o social, o religioso, o político, o linguístico, etc.
Por outro lado, há, talvez, na nossa reflexão, algo de redundante se acedermos a que a literatura, enquanto sistema de comunicação e de significação, é já, de per si, um acto cultural. Isto é, por um lado, ela se inscreveria num conjunto de práticas que teriam a ver com modos de vida, formas de comportamentos, ou simplesmente e segundo Clifford Geertz, redes de significação nas quais está suspensa a humanidade, e a que chamariamos, lato sensu, a Cultura. Por outro, seria ela própria uma realização específica,  adjectivável, que designariamos, por exemplo, por cultura literária.
Temos claramente consciência de que se, por um lado, é incontornável e indesmentível a forte presença de componentes culturais de várias origens no escritor africano (a língua, os modelos estéticos, os valores éticos, mundividências, etc), por outro lado, quando falamos do espaço cultural e literário, referimo-nos a um espaço dinâmico, plural, diverso, oscilante e fragmentário. A incidência desses elementos tanto na criação como na crítica literária empurra-nos forçosamente para a questão da função que ambas desempenham.
O processo de criação, em especial para o autor africano, é um jogo às vezes difuso, às vezes inconcluso, entre uma memória individual e outra social, entre a necessidade de afirmação de um território de pertença e de outro, a que amiúde aspira, mas que parece querer escapar-se-lhe.
Dois autores que, no actual universo literário moçambicano, mais corporizam esta dualidade são Aldino Muianga e Paulina Chiziane. Mais amarrado ao conto, o primeiro, mais virada para o romance, a segunda, ambos fazem da escrita acção e revelação de um território cultural intensamente marcado quer por uma memória mítica quer pelos imponderáveis apelos do quotidiano.
Enquanto que Aldino encontra nos domínios suburbanos e rurais espaços diegéticos priveligiados dos seus contos e romances para inscursões às vivências do quotidiano, ao mundo dos mitos e das tradições,  Paulina, programaticamente, define temas em que o resgate cultural é pronunciado, mesmo quando posto em questão. Tais são, entre outros, os casos da poligamia, do lobolo, da feitiçaria, etc.  Basta, para comprová-lo, seguir o curso da sua criação romanesca com obras como Balada de Amor ao Vento, Sétimo Juramento e Niketche.
E na representação das oralidades (rurais, urbanas e suburbanas), o que estes e outros autores moçambicanos acabam por projectar são, muitas vezes, as tensões e as contradições entre a modernidade e a tradição, o passado e o presente, o local e o global.
Ao sobrevalorizar o elemento cultural, a própria escrita, enquanto criação, acaba, invariavelmente, por assumir uma função crítica. Isto é, o autor africano dando-se conta da desagregação da civilização real de que faz parte, investe na reivindicação de uma ordem cultural que comporta elementos e valores de estabilidade e dignidade, numa atitude interventora e redentora.
Há, neste particular, além de um agudo sentido crítico do presente que se vive, a representação de outras racionalidades, quando não de uma religiosidade difusa, discernível no recurso persistente ao sobrenatural e aos antepassados, como se reconhece nos autores acima referidos ou em Marcelo Panguana com O Chão das Coisas (2003),  e, até certo ponto, em Mia Couto. Com o seu romance de estreia, em 2003, As Duas Sombras do Rio, João Paulo Borges Coelho acabará por trilhar pelo mesmo diapasão.
Não podemos, contudo, de reconhecer que, na relação com os imaginários representados nestes e noutros autores africanos, por eles próprios serem produtos de prolongados e acentuados processos aculturativos, encontramos, quase que simultaneamente, segmentos de identificação, contradição ou, mesmo, conflito, que os colocam, algumas vezes, numa condição verdadeiramente dramática, quando não grotesca.
*Comunicação apresentada ao Simpósio “Interprenetração da Língua e Culturas de/em Língua Portuguesa na CPLP, São Vicente, Cabo Verde.

  • FRANCISCO NOA

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